Ver Angola

Opinião Estamos em Angola!

(Sobre)viver em Angola...

Cláudia Rodrigues Coutinho

Casada e com 2 filhos. Deixou a vida que tinha, em Portugal, e experimenta, desde Setembro 2015, a dimensão de uma família lusa, a viver, em Angola.

Ainda hoje recordo o bafo quente que senti na cara quando pisei o chão de Angola, pela primeira vez.

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Experimentei, logo ali, uma inesperada e surpreendente empatia com aquele ar forte e intenso que se fazia sentir e que não dá para ficar indiferente.

E nem o fenómeno de o meu cabelo ter ficado convictamente desalinhado e encrespado, me conseguiu desviar da intensidade do instante que ali estava a acontecer e que constituía o meu primeiro contacto com o solo africano.

Cheguei muito curiosa e expectante. Queria ver e entender Luanda através dos meus próprios olhos e arbítrio. Trazia, comigo, muitas opiniões e relatos das mais diversas pessoas que fui lendo e ouvindo.

Ao sair do aeroporto fui assolada por uma enorme confusão de gente que ali permanece à volta e que nos “ impinge” ajuda com o transporte das malas de viagem até ao carro, em troca de uma gasosa.

Cheguei de noite e a par do brilho das inúmeras luzes que ia deslumbrando enquanto circulava pelas ruas, senti-me perfeitamente tranquila. Estava finalmente em Luanda.

Quando saí de casa, no primeiro dia, não consegui encaixar, de imediato, o que a claridade de Luanda me ia mostrando.

O lixo na rua, a sujidade, os prédios velhos e cheios de fios, as grades nas janelas, o arame farpado à volta de algumas moradias, os seguranças à porta dos prédios e das moradias, os cheiros de alguns lugares, os guardas armados à porta dos bancos, um trânsito sem regras e que (tal como agora uma mãe de um amigo da minha filha bem descreveu) parece uma pista de carrinhos de choque em que temos de olhar para todos os lados para tentar que as motas, os candongueiros, os outros carros e os vendedores ambulantes não nos batam de todos os lados (de frente, dos lados, de trás), os semáforos que não funcionavam, os vendedores (alguns bem jovens) que aparecem à nossa frente, no meio da via onde circulam os carros e as motas de forma desordenada e rápida, a vender de tudo - pipocas, papagaios, molduras, meias, cabides, capas de telemóveis, espelhos de casa banho, tapetes, panos de cozinha, água fresca, blues, tabaco, sapatos, cortinados e varão para duche...

Estava a ser confrontada com uma nova realidade e confesso que a luz do dia daquele primeiro dia me deixou um pouco confusa.

No segundo dia passei pelos mesmos lugares e olhei para as pessoas em vez dos lugares, olhei para os seus olhos e para os seus sorrisos e depressa entendi que estava a cometer um erro que me impedia de “ver” a cidade como devia. 

Estava a utilizar a medida da minha verdade, comparava o incomparável e não estava a olhar sob a perspetiva do que me rodeava.

Não estou a dizer que estava a gostar do que via. Estou apenas a dizer que estava a respeitar o que via.

Não podemos perder o desejo de aprender e não podemos perder a determinação constante de melhorar a nossa capacidade de lidar com os outros e com o que nos rodeia.

Não podemos entender um lugar através da fácil comparação com o que temos, pois estaremos, simplesmente, a julgar.

Não temos de adotar o que vemos, basta simplesmente respeitar e honrar a sua existência.

E a partir do segundo dia já comecei a olhar Luanda como devia, comecei a olhá-la diretamente nos olhos, com um sorriso nos lábios e disponível para aprender.

E acreditem que tudo muda.

Aterrei em Angola com todas as indecisões e incertezas e regressei a Portugal com as certezas que aquelas aprendizagens me conseguiram trazer.

E cá estou eu a viver nesta cidade que se diz confusa e paradoxal mas igualmente desafiante e em que me sinto estranhamente livre.

Em setembro ancorei em Luanda com uma grande coragem para ficar por tempo indeterminado, num lugar onde as hesitações prevalecem sobre as exatidões, num lugar que nos ensina a transformar contrariedades em verdadeiros ensinamentos e lições de vida genuinamente fortes.

Uma “(an)coragem”  que nos ajuda a ver além mar e que nos transforma como pessoas.

Esta é a primeira crónica que escrevo para o VerAngola e em jeito de nota prévia considero importante explicar que pretendo apenas testemunhar a minha experiência de vida sem quaisquer julgamentos de valor ou outros.

Espero conseguir alimentar algumas curiosidades e afinidades com os que estão do outro lado e com os que estão deste lado, através da partilha das principais vivências e sensações que esta nova condição de emigrante em Angola me está a facultar.

A par de uma grande curiosidade em experimentar viver fora de Portugal e vontade de progredir e alargar horizontes, sempre ambicionei estender a capacidade de adaptação dos meus filhos e de lhes mostrar (e comprovar a mim própria) que o mundo é global e que é importante observar a vida sob outras perspetivas.

E assim foi…

Ausentei-me do meu país, da minha cidade, da minha casa, do meu emprego, da minha rua, do meu carro, da condução (não consigo conduzir aqui), ausentei-me do meu cafezinho matinal no lugar do costume, do convívio com as minhas amigas e amigos, dos aniversários dos amigos, dos aniversários dos seus filhos, dos meus passeios, dos meus jornais, do meu mar, do meu rio Tejo, dos meus livros, dos meus cheiros, dos meus sabores, das minhas corridas, das minhas rotinas, da minha verdade conquistada, da minha vida..

Ausentei-me da família, ausentei-me das grandes amigas e amigos (tenho amigas e amigos verdadeiramente especiais), ausentei-me dos ilustres conhecidos, das gentes maravilhosas de Santarém, ausentei-me dos vizinhos, dos amigos dos meus filhos, do senhor do café, do senhor da livraria, ausentei-me dos colegas de trabalho (aproveito para enviar um abraço muito especial a todos os colegas da Câmara Municipal de Santarém), ausentei-me do meu querido Executivo da Câmara Municipal Santarém (pessoas especiais, num cargo especial), ausentei-me dos meus dias, da minha essência.

Enfim, ausentei-me das pessoas, dos cheiros, dos lugares, dos momentos, do “costume”, de tudo o que me fazia sorrir e cansar.

Durante o processo da organização e preparação das coisas práticas da viagem, foram várias as ocasiões em que provei a fragilidade dos bens materiais perante a robustez das emoções e dos afetos.

Começou na aborrecida organização das malas de viagem. Já imaginaram? Como é que se coloca uma vida em malas de viagem com limite de número e peso?  

Adiei esta chatice até aos últimos dias da partida. Não foi fácil, mas no meio de tantos ensaios e idas à balança para controlo do peso, rapidamente chegamos às verdadeiras prioridades.

Decidir entre os pesos de umas sandálias que não podiam mesmo ficar e de um livro ou medicamento... Questionei-me muitas vezes sobre a utilidade de tanta coisa que não me importei nada de deixar. Pelo contrário. Senti-me até mais leve e livre.

Quando começámos a comunicar a nossa decisão de sair de Portugal, ouvimos as mais diversas e divergentes reações dos amigos, família, conhecidos…

Da geração que já tinha tido a experiência de viver em Angola, antes de 1975, ouvi expressões que me confortaram: “Aquela terra é maravilhosa. Tenho saudades. Fomos muito felizes, lá. Aquela terra entranha-se. Vai. ”

No entanto, e até ao dia da partida, a maioria das reações não foram assim. A expressão era recorrente: “Angola? A sério? E vão para onde? Luanda??? Com os meninos? Aquilo está tão mau. Têm a certeza? Olha que o X esteve lá e diz que aquilo é muito difícil. É inseguro, tem a malária, as diarreias, a falta de luz, a água, os hospitais, agora há a crise. A sério? Mas porquê? Estão aqui bem”.

Confesso que tive dias muito difíceis com muitas (mas mesmo muitas) adversidades que acusavam já o que era Angola.

Mas, ainda assim, nunca a minha certeza se moveu. Porque sim. Porque acreditava que era possível e porque sabia que queria e tinha decidido.

É assim mesmo. Uns decidem que sim e outros decidem que não.

E assim foi. Fechei todas as portas que tinha para fechar e cedi o que conhecia e que me era cómodo. Parti!

O dia da nossa chegada ao aeroporto de Luanda foi marcado pela forma como a minha filha recebeu esta cidade.

A M. aterrou em Luanda com as emoções completamente desordenadas e divididas.

Ela tinha passado, nos últimos meses, por uma duríssima prova, com as inúmeras opiniões e recomendações que ouviu de todos sobre a sua mudança, as idas às vacinas, as idas às consultas médicas, a triagem da roupa, dos livros, a preparação das malas, as despedidas das amigas e dos amigos, das avós e avô, a “despedida” de tudo o que conhecia e gostava…

Tinha chegado finalmente o dia da “prova dos nove”...

De um lado, residia uma euforia desmedida - estava finalmente a concretizar o que pensava ser um sonho, ia conhecer uma nova cultura e costumes, uma nova escola e amigos - do outro lado, residia um pavor tremendo pois estava a enfrentar os medos que idealizou através dos testemunhos que foi ouvindo (a insegurança, os mosquitos, os assaltos, a falta de liberdade...).

O medo era tal que olhava para tudo com pavor. Não me largava. Agarrou-me na mão com toda a sua força para tentar encontrar a segurança e a tranquilidade que aquele momento não lhe estava a proporcionar.

A M. estava amarrada a tanta ideia feita.

E foi assim durante o caminho para casa em que nem a passagem por alguns pontos que ia reconhecendo da novela “A única mulher”, que seguia religiosamente em Portugal, como a estátua do Dr. Agostinho Neto ou os táxis azuis e brancos (candongueiros), lhe conseguiram esboçar um sorriso.

Não queria sair de casa e quando saía pedia logo para regressar.

O meu filho D., por outro lado, emanava uma felicidade e alegria contagiantes pois tinha chegado, finalmente, ao “outro mundo” que tinha zebras e macacos e outros animais.

Porque se tinha proposto a isso. Porque queria estar ali.

A M. não conseguiu ver com os seus olhos (viu com os olhos dos outros), e por isso não contemplou o mesmo que o D.

Depois de ter passado pelo desafiante primeiro dia de escola, a M. tem já novas amigas e amigos, gosta de ir para as aulas, gosta dos professores, quer ir sempre para a praia, já tem os seus restaurantes favoritos, anda no carro serena e até já fez um trabalho (inteiramente voluntario e com direito a powerpoint) sobre a vida do Dr. Agostinho Neto e pede-me quase todos os dias para experimentar andar nos famosos táxis azuis e brancos – candongueiros.

Não se importa de colocar o repelente todos os dias e cada vez que sai de casa, de ter os “chatos” cuidados de prevenção ao nível da saúde e segurança, de dormir com o ar condicionado ligado, da chuva, do caos do trânsito, da imprevisibilidade dos dias...

Agora, sim, está a “ver” Angola com os seus próprios olhos.

Através desta experiência aprendi rapidamente que a forma como vivemos e sentimos a vida, depende apenas e simplesmente da forma como a olhamos.

Tal como dizia Shakespeare, “Não há nada bom ou mau .. é o pensar nisso que atribui essas características”.

Angola conseguiu certificar-me que a felicidade não vem do que temos, mas do que “pensamos”.

E eu sempre “pensei” conseguir viver em África, sempre “pensei” conseguir viver fora do meu País.

Porque, simplesmente, assim decidi que ia ser.

Aqui em Luanda observo, diariamente, verdadeiros exemplos sobre a importância de um simples sorriso. Basta, para isso, observar as crianças que brincam na rua com tudo o que encontram (rodas, cordas, caixas de papelão...), no meio da lama, junto ao lixo, junto à estrada e a outros perigos.. sempre com um sorriso e alegria autênticos e transparentes que é impossível não contagiar.

E esta constitui uma das grandes surpresas que encontrei em Angola: a riqueza do seu povo.

Possuidoras de um olhar franco e sorrisos genuínos, são pessoas boas, gratas, alegres e corajosas.

No meio da vida difícil que têm, no meio da sobrevivência diária (em que podem até não ter comida para dar aos seus filhos nesse dia), conseguem estar sempre, surpreendentemente, agradecidas pela vida, com um sorriso que lhes traz a esperança de um dia melhor.

Aqui um sorriso vale ouro, em especial para aqueles que já não o conseguem esboçar ou que se esqueceram de como o fazer.

O efeito de um sorriso é poderoso, mesmo quando não é visível.

Claramente que não preciso de vos transmitir que tudo aqui é lindo e maravilhoso. Este país anuncia muitos paradigmas e contrariedades.

Há que ter muita (muita) boa vontade. Muita resiliência (“Resiliar”é a palavra chave).

A nossa ação surge daquilo que desejamos e pensamos importante.

É preciso querer. Ter muita determinação.

E bem sei que nem todos conseguem. E nem todos têm de conseguir.

E é legítimo que não o consigam ou que não o queiram conseguir.

Tenho tido dias confusos, vazios.

Cheguei a uma terra nova e não sei ainda qual é o meu “ lugar”. Tento adotar um espaço que ainda não conheço e que ainda não me conhece.

Há dias em que não conseguimos e há dias em que conseguimos.

Há dias que aceitamos e há dias que não aceitamos.

Mas aqui é assim mesmo. Um dia de cada vez…

Pois, estamos em Angola! .

O povo Angolano é grato pela vida, pela paz, pelo dia em que acordam e conseguem sempre ” ver” o bom nas tantas contrariedades que enfrentam nos seus dias.

E isso ensina-nos muito.

Ensinou-me que estou em Angola!

Ensinou-me sobre (como) viver em Angola.

Opinião de
Cláudia Rodrigues Coutinho

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