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Opinião Paleio Alheio

Luandenses

Cláudio Alexandre

Cláudio Alexandre, contista, cronista, romancista e contabilista. Licenciado em Gestão de finanças, prefere contar palavras que números, por uma razão, as palavras são contáveis, os números não.

Encontraram-no o sol ainda não havia nascido, era incrível como resplandecia diante do azul-escuro do amanhecer. O tal pedestre que o encontrou assustou-se logo e comunicou as autoridades, ligou para o 113 com a voz trémula, coisa igual nunca vira.

:

- É bem grande.

- Meu senhor por favor se acalme, e descreva-o bem?

- Venham só. Ele ta aqui na Marien Guabi.

Quando a polícia chegou ao local, já uma multidão o circundava, embora ninguém se assanhasse em chegar mais perto, pois metia medo. Coisa igual nunca se viu em Luanda. Chamaram então os especialistas na matéria. Biólogos, veterinários, ambientalistas, padres e outros charlatões. Estes confirmaram. Era mesmo um urso polar. Quando a confirmação fora anunciada na radio, os luandenses festejaram como se fosse um golo da selecção, é nosso gritavam os luandenses. Como um urso saiu do polo norte até Luanda ninguém sabia dizer, embora o tal do ambientalista se atreveu em dizer que o fenómeno era causa dos efeitos do aquecimento global, suspeitava ele que o urso viajara no bloco de gelo lá do polo norte até aqui em Luanda. Os Luandenses preferiam acreditar que aquele Urso polar viera dos céus, um presente de natal, já que era Dezembro, e Dezembro e polos nortes têm tudo a ver. Alguns charlatões ousaram em afirmar mesmo que em breve nevaria em Luanda, pois os ursos polares sentem faro de neve, e se ele escolhera Luanda para se hospedar era porque a neve estava a caminho, mais festa fez-se com essa notícia, vai nevar em Luanda. O povo estava mesmo eufórico como nunca esteve. Em poucas horas o urso polar fora considerado património da cidade de Luanda e já ameaçava o protagonismo da palanca negra gigante por justa causa, a palanca é de Malange. Deram-lhe um nome, Kiandandu, por ser um urso polar-laundino. Não demorou para Kiandandu virar uma noticia mundial, o New York Times escreveu “ um urso polar africano” os Luandenses insatisfeitos com o destaque cheio de inveja dos yankees, corrigiram “ Africano não, Luandense, que África é grande”. Era mesmo o orgulho da nação Luanda, tanto que o governador não resistiu e convidou o urso para almoçar no palácio provincial, ainda por cima sem escoltas, o urso enorme já não metia medo, a brancura dos seus pelos transmitiam paz. Foi servido a melhor trufa para o visitante, ambos comeram, embora ao invés de um diálogo à mesa aconteceu um monólogo. O governador, enlevado pela brancura dos pelos do animal a sua frente abriu o almanaque podre da politica na capital, sorte sua aquele era um monologo off-record. Kiandandu devolvera á cidade a sua verdadeira essência, pela primeira vez em muitos anos as artérias da cidade voltaram a dar a luz a poetas que prosperavam porque o urso devolveu a Kianda a sua qualidade de musa, a tal que inebria de palavras belas os poetas, e lhes move as mãos com fiozinhos imaginários como se estes fossem marionetes, fazendo-os escrever o possível sobre o impossível, e o imaterial sobre o material. Assim ressurgiram das cinzas os poetas e num estalar de dedo, Luanda voltara a ser Loanda, como dantes.

O Natal estava as portas, e a felicidade é praxe nessa época, mas em Luanda vivia-se numa intensidade inefável. As crianças pareciam ter ganhado um bilhete dourado para a fábrica dos chocolates de Willy Wonka, os jovens pareciam estar em processo de um orgasmo que durava vinte quatro horas, e os velhos como se tivessem descoberto a fonte do rejuvenescimento. Tudo por causa do urso polar e da neve que em breve chegaria. Para receber aquele que provavelmente seria o melhor natal de sempre, os Luandenses decoraram a cidade a moda antiga, recortes de papel, recortes de sacos plásticos, e luzes coloridas em todas as ruas, aquilo deu uma trabalheira mas valera a pena, Luanda deslumbrava tanto que parecia carnaval da Bahia, só que um bocadinho mais bonito. As cores de Luanda viam-se até da estação espacial, confirmou um astronauta russo. O INAMET fizera a previsão, a véspera de natal seria o momento que pela primeira vez pousaria um floco de neve em solo Luandino, angolano e quiçá africano. O floco provavelmente não pousaria no chão tecnicamente pois seria tomado pelos serviços secretos angolanos caso exista um, guardado em frasco blindado fora de alcance de crianças e de qualquer outro adulto, e conservado em uma temperatura ambiente para o floco de neve, ou seja, em temperaturas polo nortenhas.

As expectativas Luandinas estavam tão altas que se confundiam com nuvens, e na manhã de 24 de Dezembro quando os técnicos do INAMET fizeram a mais recente e detalhada previsão, os Luandenses pararam de respirar oxigénio e passaram a inspirar e expirar optimismo. O pessimismo era um estado em extinção em Luanda. A queda estava prevista para acontecer algures em Luanda as 23:59 de 24 de Dezembro, vê se pode? Existirá algo mais mágico?

Todos queriam testemunhar o primeiro floco de neve que cairia em terras Luandinas, aquilo seria histórico, provavelmente matéria de exame para as gerações vindouras. Os Luandenses então puseram-se a esperar pelo primeiro floco de neve das suas vidas. Sentaram-se mesmo na rua e daí não arredaram os pés. Ainda era manhã do dia 24. Fizeram bem de esperar sentados, pois aquele dia parecia ser um dia de marte, de tão longo que aparentava estar. O sol queimava os Luandenses que olhavam para o céu tão focados como se quisessem forçar a noite com a força do pensamento, não funcionava, ainda que pouco desejado, o sol estava lá inerte cumprindo lentamente sua formalidade de sol, até chegar a noite. E a noite chegou. Telescópios, binóculos, monóculos, e outros aparelhos oculares, todos eles virados para o céu de Luanda, preparavam-se para a efeméride. OS luandenses que não tinham estes aparelhos dirigiram-se para o miradouro da lua, estes, desprovidos de qualquer objecto ocular, recorreram às alturas para também ver de perto a neve cair pela primeira vez. Quem guardou os pares de óculos para observar o último eclipse solar, aproveitou para reusar a bugiganga, pois ouvia-se rumores que a neve viria tão brilhante, que a sua luz seria capaz de cegar olhos humanos. É certo que Luandinamente acredita-se ser esse o uso desses óculos, proteger da cegueira. Lendas urbanas típicas de Luanda. 

O desvairado optimismo deu lugar á um nervoso pessimismo. As horas avançavam noite a dentro, e nenhum sinal que nevaria, pior é que os luandenses não sabiam quais os sinais prévios de uma nevasca. Assim ficava complicado. O INAMET insistia na previsão, então os luandenses insistiam na espera, mas quanto mais esperavam mais ridícula aquela situação se parecia. Aos poucos alguns idóneos abandonaram o fanatismo impercebível pela neve luandina, e decidiram rumar para casa, estes não haviam chegado ainda nas suas casas e ouviu-se:

- Oh meus Deus! Vem aí a neve. Gritou o sujeito com o melhor telescópio nas redondezas. – Ela é linda. Acrescentou o tal.

Quem havia levantado para ir embora, voltou no seu lugar, quem ainda esperava arregalou os olhos. Quem era Luandense viveu a plenitude da felicidade humana. Realmente confirmou-se que dos céus caia algo. Um algo não identificado. É claro que é a neve luandina, os Luandenses celebravam. Fez-se festa grande enquanto o tal algo que caía dos céus se aproximava lentamente do chão de luanda, tão lentamente como se estivesse em camara lenta. Os luandenses esperariam o tempo que fosse preciso. Movido pela euforia, o governador de Luanda decretou tolerância de ponto nos próximos sete dias. Mais festa fez-se. Luanda estava ao rubro, as pessoas abraçavam-se, beijavam-se, riam a toa, saltavam de alegria, houve quem chorou de emoção, só os que já viram a neve nas suas andanças mundo afora não se extasiaram. Mas essa era uma minoria tão minorca que quase não contava. Chegara a hora. Pelos cálculos feitos pelos estudantes do Makarengo, a neve cairia em 4,3,2… mas aí o mesmo fulano com o melhor telescópio nas redondezas gritou:

- Oh meus Deus! Não é neve, é chuva. Nem deu tempo para as pessoas exclamarem em coro “chuva!” e caiu nelas um mar de águas vindas dos céus. Aquilo foi um verdadeiro balde astronómico de água fria para as suas aspirações. Desiludida, a multidão Luandina dispersou. A chuva provou continuar a ser o pior pesadelo de Luanda. Choveu até na manhã seguinte, a manhã de natal. Sem poderem rolar na neve, desenhar anjinhos, ou construir bonecos gorduchos de neve, as crianças luandinas brincavam aos barquinhos pois as ruas alagadas de luanda proporcionavam um ambiente propício. E foi que uma dessas crianças encontrou uma garrafa flutuando, e nessa garrafa havia uma carta, e a carta dizia:

De Kiandandu, o Urso Polar

Para os Luandenses,

Esqueceram-se de mim, trocaram-me pela ilusória neve. Logo eu que devolvi a alma a esta cidade que desaparecia aos poucos do mapa-mundo. Devolvi o charme da vossa cidade que se escondia nas artérias empoeiradas, devolvi a poesia a muito perdida na rotina dinâmica das pessoas sem tempo pra contemplar a poesia de Luanda que se manifesta em todos os lados, basta ter olhos de poeta para ver, e são esses olhos que vos dei. Fiz-vos redescobrir a Loandidade na Luanda moderna e cinzenta como a argamassa que lhe moderniza com arranha-céus. Fiz os jovens largarem seus smatphones por minutos e descobrirem que Luanda também é sensível ao toque, tal as telas dos seus “smarts”, fiz eles fazerem prints de Luanda com as suas mentes. E a imagem de Luanda ficou nítida nas suas memórias. Fiz eles conectarem-se mais, como se fizessem todos eles parte de uma LAN, ou MAN? Não sei. Verdade mesmo é que enquanto eu vos permitia descobrir a vossa cidade, vocês também me fizeram descobrir a arrogância, egoísmo, orgulho doentio, ingratidão e a idiotice dos Luandenses. Nunca cheguei a perceber o porquê do orgulho de ser Luandense, sim, vocês têm uma linda cidade, mas para que serve isso se vocês são todos cegos, e não percebem que Luanda está cheia de “ursos polares” que deixariam boquiaberto qualquer forasteiro. Assim como me senti traído, as outras belezas de Luanda também sentem a vossa indiferença, a vossa incapacidade de se deslumbrar com cidade que têm, preferem olhar para algo que não têm, por isso trocaram-me pela neve. Mas digo-vos, não percam a esperança na vossa cidade, ainda dá tempo para um resgate, para isso vocês só precisam ver Luanda tal como ela é, interiormente, porque exteriormente é só lixo, esgotos a céu aberto, prédios sujos, preços absurdos, meninos de rua, mercados informais em cada esquina, Catambores, engarrafamentos, e mais lixo. A vossa arrogância vos acomodou, e acomodados estão, com o lixo a bater as vossas portas, vossas estradas, a vossa vida. Desse jeito não tem jeito, os turistas nunca virão, nem os ursos polares, e nunca a neve, porque todos sabemos, a neve não fica bem em cima do lixo.   

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Cláudio Alexandre

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