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Zinga, a “criança feiticeira” que foi enterrada viva luta agora por uma nova vida

Zinga completou 18 anos na quinta-feira e vive num centro de acolhimento de crianças em risco de Luanda, onde dá novo rumo à vida. Fugiu de casa aos cinco anos, escapou duas vezes à morte às mãos dos tios e passou parte da infância na rua. Tudo porque, aos olhos da família, era uma ‘criança feiticeira’.

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"O meu tio acusou-me de ser feiticeiro. Chegaram à conclusão em casa que me deviam matar. Pegaram e deram-me um monte surra e eu fugi", começa por contar à Lusa, algo nervoso, Zinga, um dos mais de 100 rapazes que vivem no Centro de Acolhimento de Crianças Arnaldo Janssen, resgatados à rua por aquela instituição de Luanda.

Além destes, o centro, fundado em 1993, apoia directamente mais 500 crianças que ainda vivem na rua da cidade. O director da instituição reconhece que deste universo, 68 por cento são crianças que fugiram de casa acusadas de feitiçaria pela própria família, por norma convencidos por seitas religiosas e seguindo rituais praticamente tribais, ainda muito presentes no norte do país.

Seguindo as orientações dos ‘pastores’, muitas acabam queimadas ou abandonadas no lixo, numa tentativa das famílias de explicarem o que de mal acontece em casa. Um problema que segundo João Facatino resulta da pobreza "não só material, mas também de espírito".

"Mesmo pessoas que estudaram acreditam [nas crianças feiticeiras]. Doutores, que estudaram, que viajam", alerta o responsável do centro, em declarações à Lusa.

Um simples sonho sem explicação de um familiar ou a morte de um recém-nascido são motivos suficientes para mudar a vida de uma criança.

Zinga é um exemplo da recuperação das ‘crianças feiticeiras’ pelo centro. "Quando é possível", sublinha o director da instituição, recordando que nem todos conseguem reintegrar-se na comunidade, dado o nível do trauma infligido.

No caso de Zinga, já tirou vários cursos e hoje está a fazer uma formação em gestão de recursos humanos, vocação que quer seguir, além dos sonhos de ser jogador de futebol e produtor musical que ainda alimenta.

Antes viveu mais de três anos nas ruas de Luanda, comendo as sobras que os restaurantes da cidade deitavam ao lixo, até que alguém, em 2005, o levou à porta daquela instituição. Tinha oito anos e, conta, nunca mais viu a família. "Aquilo para mim já passou. O mais importante é seguir a minha vida em frente", responde, recusando pensar muito no que aconteceu para "não alimentar raiva".

Na altura, a família, sobretudo os tios depois de recorrerem aos pastores de uma seita local, explicaram todos os problemas e dificuldades com a presença de um ‘feiticeiro’ entre eles. Primeiro foi o irmão mais velho. Seguiu-se Zinga. "O pastor disse que ‘é esse aqui’, para mim", recorda.

Antes de ter de fugir de casa, com apenas cinco anos, os tios agrediram-no na cabeça com um bloco. Ficou prostrado no chão, numa poça de sangue, desmaiado. "Meteram-me num saco banco e deixaram-me na obra de uma casa, porque pensavam que eu tinha morrido", recorda, sem rodeios.

Diz que foram os pedreiros que o encontraram dentro do saco e o levaram para o hospital que lhe salvaram a vida.

Ainda voltou para casa, mas de imediato a acusação da família também: "Disseram-me ‘o feiticeiro voltou aqui’”. Algo emocionado, recorda que foi amarrado e enterrado vivo, novamente pela família. "Até hoje fico burro. Estava amarrado, como é que consegui sair", conta.

Percebeu que à terceira seria de vez e nunca mais voltou a casa, encontrando refúgio pelas ruas de Luanda, antes de chegar ao centro Arnaldo Janssen, uma referência neste tipo de acolhimento na província capital, onde vivem mais de 6,5 milhões de pessoas.

"Encontrei uma família boa, todos somos irmãos e vivemos bem. Digo sempre que é preciso esquecer o passado, viver o futuro, realizarmos os nossos sonhos", garante.

Zinga tem também agora a responsabilidade de ajudar Benjamim, o mais recente membro do centro. Tem 12 anos e passou o último ano pelas ruas da zona de Alvalade, em Luanda: "A minha mãe perdeu o meu irmão, logo depois de ele nascer. Disseram que eu era feiticeiro e tive de fugir, porque vinham com paus e facas para me matar".

Benjamim tenta igualmente fazer uma vida nova: "Nunca mais os vi [família]. Aqui estou bem, não tem problema", desabafa.

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