Ver Angola

Cultura

Gabriel Ambrósio: “A literatura transgride fronteiras e descoloniza mentes abrindo-as e matando a sua ignorância”

Tem 30 anos e nasceu na província do Zaire. Mavenda Nuni yÁfrika, pseudónimo literário, manifesta a sua paixão pela literatura, que surgiu ainda em criança, através de contos, crónicas e poesia. Já ganhou alguns prémios, mas revela que são apenas incentivos, pois escreve para leitores e não para prémios. Gabriel Ambrósio defende ainda que cabe aos artistas, à imprensa e ao Governo dinamizar a leitura, para que seja criado esse hábito entre os cidadãos, já que, para o escritor, os angolanos lêem pouco e a literatura não lhes desperta curiosidade. Actualmente está a terminar a sua segunda obra, e deixa o conselho: “Amem a leitura e se viciem nela. Sereis mais tolerantes e menos fanáticos em tudo.”

:

Quem é o Gabriel Ambrósio?

Gabriel Ambrósio é um jovem que ama a cultura, responsável e humilde. Nasceu a 2 de Agosto de 1986, na província do Zaire. A infância foi na mesma província, e fui um menino ora irrequieto ora aventureiro, e às vezes calmo e obediente. Cresci com atitude de querer fazer coisas sem medo. Idealizava os sonhos até que aprendi a desenhar e executar carros de lata, pois na época não tínhamos bonecas e os caminhos estavam fechados para acesso aos centros urbanos. A guerra civil era forte, e não deixava ninguém se movimentar à vontade, ou com medo de emboscadas, ou por perseguição. Tenho memórias tristes desse período... Formei-me no Brasil, na Pontifícia Universidade Católica de Goiás e tenho 30 anos.

Quando começou a ler percebeu logo que queria pegar no papel e na caneta?  Como surgiu a paixão pela literatura?

Comecei a ler quando frequentava a 2.ª classe, nos anos noventa e tal.  A paixão pela literatura aparece quando estava no ensino médio, mas intensificou-se enquanto frequentava a universidade.

Qual a sua inspiração quando escreve?

A inspiração é a realidade sócio-histórica e cultural, a vontade de expressar o que enxergo, o que vivíamos, o que observo e escuto pelos mais velhos. Os amigos ou amigas com quem compartilho ideias. E a força pan-africanista também.

Como define o seu estilo de escrita?

Não cabe a mim, definir o meu estilo, mas misturo os géneros desde os contos até às crónicas em prosa e verso. Na verdade, deveria ser um crítico literário a estudar o que escrevo e opinar sobre o estilo. Eu sei que escrevo muitas coisas e misturo muito.  

Quais são os temas que mais gosta de abordar?

Os temas que gosto são de carácter sóciocultural e algumas vezes sócio educativos. Também não há limites. Tudo passa na escrita que faço; como os de militância pan-africana.

Faz pesquisa para o que escreve? Como é feita essa pesquisa?

Há temas que pesquiso antes de escrever, mas há que diferenciar, pois escrevo como académico e como artista da arte de compor simbologias, reflexões ou experiências. Por vezes prefiro pesquisa oral, ou seja, aquilo que os historiadores denominam de fontes orais. A escrita também, ou bibliografia, utilizo-as muito… E há coisas que chego in loco para pesquisar.

Define-se como poeta, cronista e contista, um artista que se dedica à arte poética e literária. Que género mais gosta de escrever e porquê?

Como escritor muitas vezes penso que escrevo contos, mas a realidade parece mais para crónica, logo, esses dois géneros confundem-se. A poesia está em quase tudo em que escrevemos literariamente. Mas escrevo em versos e prosa também. Sou poeta, pois componho poemas e poesia. O porquê, às vezes são as inspirações, os contextos que fazem com que escreva mais o tal género.

Em 2015 lançou “Áfricas Ocultas”, a sua primeira obra. Qual a mensagem que pretende transmitir com este trabalho?

Sim. Já participei em várias antologias, mas Áfricas Ocultas é a primeira obra individual. A mensagem não, na verdade, as mensagens que quero transmitir ou compartilhar, uma delas é mostrar ao mundo ocidental que existem várias Áfricas, pois somos povos diversos e com realidades diferentes, ora semelhantes. As outras mensagens são sobre o nosso próprio povo continental, que continua a ignorar, ou esquecer, os/as mestres, os ancestrais e os vários problemas quer identitários, quer históricos, ou sócio culturais, e claro, os políticos. Como também a falta de compromisso de vários líderes africanos, e o povo continua alheio ainda à sua realidade. Reconheço que há muitos jovens comprometidos no despertar das africanidades, mas somos pouquíssimos.

Já ganhou algum prémio literário? Qual/quais? O que pensa dos prémios confinados à literatura?

Sim, ganhei o terceiro em crónica, no 5.º concurso literário “Mãos de falam”, Salvador-Bahia; e o quarto lugar no concurso internacional de poesia Germano Machado em 2014, porém no Brasil.

Eu particularmente não acho que escrevemos para prémios, mas sim para leitores/as. Os prémios são incentivos, reconhecimentos dos trabalhos ou obras dos autores. Alguns são simples símbolos e esses podem ser mostrados, e outros são em valores monetários e aí a subjectividade surge de novo.

Em Angola é possível um escritor viver apenas da venda das suas obras?

Bem, isso é relativo, pois há quem edita e reedita as obras e quando já é bem conhecido ou é ajudado pela mídia, penso que pode viver vendendo bem. Mas, o outro lado, não acho que é possível. Porque a cultura literária me parece ainda pouco valorizada, e o consumo das obras literárias é muito pouca. Ainda pensando no custo de vida em Angola que é altíssimo. Repito que isto é relativo.

Na  sua  opinião, como são os hábitos de leitura dos angolanos? A quem cabe dinamizar esses hábitos na sociedade?

Cabe a dinamização aos agentes culturais, educativos, à imprensa televisiva e escrita, aos artistas das palavras, ou seja, os/as escritores/as e claro, os ministérios da educação, da cultura e da comunicação social fazendo o pleonasmo.

Quanto aos hábitos de leitura, os angolanos lêem muito pouco, por exemplo, quando estou andar nos táxis levo comigo livros, revistas, mas dificilmente me deparo com alguém que, pelo menos, tem curiosidade em saber o título do livro ou mesmo ver a capa. Na verdade, ainda estamos longe do hábito de leitura. Os próprios estudantes, quer sejam universitários ou do ensino médio, pouco prestam atenção aos livros e quiça à leitura? Os estudantes universitários quase não lêem livros fora daqueles que os professores obrigam. Em Angola, temos muitos doutores nos gabinetes e professores de escolas e salas de aula que não lêem nada também, ou talvez jornais, matéria do seu interesse. Os programas televisivos não falam e nem tocam em questões de leitura, mas gostam de programas que nada tem a ver com a educação do cidadão.

Muitos  escritores e artistas ligados à cultura reclamam da falta de apoios por parte do país. A literatura, ainda é o parente pobre das artes em Angola?

É certo que muitos escritores clamam por apoios. Às vezes é complicado. Também acredito que a literatura é o parente pobre das artes em Angola, seguido das artes plásticas e os escultores. É a minha opinião...

Para si, o que é a literatura e qual o seu poder?

Literatura é uma das mais sagradas áreas para o estudo das realidades socioculturais, políticas e religiosas, produzidas na humanidade. Não existe uma definição ou conceito único sobre a literatura. Ela é um meio de despertar da mente, ensina-nos a enxergar e nos posicionar sobre as várias situações no quotidiano. Como também é arte de reflexão sobre o silêncio e a imaginação do ser humano. Ela pode ser oral e escrita.

O seu poder é imenso.  Essa questão é pessoal e subjectiva. Mas os efeitos podem ser colectivos. Vou tentar responder em poucas frases: o poder da literatura é muito mais do que imagino, pois ela humaniza, empodera, conscientiza, politiza e ajuda a enfrentar problemas de autoestima, transgride fronteiras construídas por humanos, desaliena, descoloniza mentes, inspira em vários sentidos, positivos e negativos, abre a mente e mata a sua ignorância; também aniquila preconceitos e estigmas construídos por cientistas, literatos, historiadores, etc., abre mundos e mundos, e pode ajudar no resgate dos valores (como a ancestralidade, a solidariedade, a generosidade, o respeito) africanos ou angolanos, que se perdem dia pós dia. Como esse poder nos transforma realmente em seres independentes no pensamento… Mas há que escolher bons livros para se sentir todo esse poder.

Qual o futuro do escritor Gabriel Ambrósio? Já tem planos ou projectos?

O futuro é um feto, pois não há tanta certeza do que será, mas tenho em mim esperança e optimismo, que posso dar mais para África, Angola ou mundo.

Planos e  projectos tenho vários. Um dos projectos, que pode ser a segunda obra, intitulo de “Solidão das Memórias”, e há outros que não posso revelar ainda. Mas “Solidão das Memórias” está quase tudo pronto, faltando os apoios e incentivos para terminar e o tornar público. Tenho mais optimismo nos meus projectos que na salvação do mundo ou por meios literários...

Por último, há alguma mensagem que gostasse de deixar aos nossos leitores?

Amem a leitura e se viciem nela. Sereis mais tolerantes e menos fanáticos em tudo. Leiam e valorizem as experiências de diversos autores, interpretem de várias maneiras, mas não aceitem tudo o que lêem, podem duvidar criticar ou se inspirarem. Ademais, vivam a vossa realidade. Desconstruam visões distorcidas e alheias à vossa realidade. Lembrem se de que “não é obrigatório que se concorde com tudo que lês” (Marcus Garvey). 

Permita anúncios no nosso site

×

Parece que está a utilizar um bloqueador de anúncios
Utilizamos a publicidade para podermos oferecer-lhe notícias diariamente.