Ver Angola

Turismo

“Angola fez-me sentir uma saudade desmesurada sem sequer conseguir explicar do quê”

Esta é a história de Paula Cristina Almeida, contada na primeira pessoa. Filha única entre quatro rapazes, nasceu em Luanda em meados da década de 70. Aos cinco anos saiu de Angola, mas Angola nunca saiu de si. Não há explicações para este amor desmesurado por um país – “está no sangue” – é o melhor que consegue. Trinta e cinco anos depois fez novamente as malas e foi à descoberta de memórias que nem sabia ter. Não esconde “um nó no peito” por algumas das realidades que presenciou, apesar de sempre disfarçadas por um sorriso de quem nada tem. De coração cheio, promete não deixar mais Angola escapar por tantos anos e se a felicidade puder ser medida por metro quadrado não tem dúvidas, o pequeno T1 que partilhou com pais e irmãos no centro de Luanda ainda vai ser seu novamente.

:

Paula, em primeiro lugar, fale-nos um bocadinho sobre si. Onde nasceu, como foi a sua infância… O que é que recorda do seu país?

Eu nasci em Luanda em 1976 e sou filha única entre quatro rapazes. Sou a número quatro da família Calupata. Deixei Luanda com cinco anos de idade quando, com os meus irmãos, vim estudar para Lisboa. Apesar de ter vindo para Lisboa muito pequenina trouxe comigo muitas recordações que ainda hoje guardo e fazem inclusivamente parte do meu modo de vida.

Recordo-me perfeitamente da rigorosa Sr.ª Professora Clemência que tanto me ensinou e ter-me-á inclusive moldado para a vida, exigindo o melhor de mim todos os dias. Não dava tréguas a Sr.ª D. Clemência, não dava mesmo. Plantou uma boa semente.

Recordo-me da quinta da minha madrinha cheia de pintainhos, girassóis, mangueiras e tomates. Não há aroma de tomate como aquele e digam o que disserem, também não há mangas como as daquela quinta.

Recordo-me das brincadeiras ao ar livre e em particular da forma livre como brincava. Recordo-me de “fugir” de casa sempre que os meus pais me contrariavam, a minha mãe em particular, e lá subia eu dois andares, eu e o meu “ÓÓ”, e refugiava-me na casa da minha madrinha. É difícil ter recordação melhor do que esta (risos).

Tenho também memória, e faz parte do meu presente, dos famosos almoços africanos, que juntam a família, os amigos, os amigos dos amigos e até mesmo os que passassem e se quisessem juntar. Foi assim que cresci, foi assim que o meu pai me educou. São estas as raízes que sei que trago deste meu país, o sentido de partilha e grande generosidade. A porta está sempre aberta.

E quem é a Paula agora? Onde trabalha, onde vive, quem é a sua família?

Bom, quase que diria que actualmente existem duas Paulas sobre quem posso falar. De Segunda a Sexta-feira encontramos a Paula Cristina Almeida que é uma workaholic por natureza e que tem o privilégio de amar o que faz. Esta Paula luta diariamente pelo equilíbrio entre as suas responsabilidades e desafios profissionais e o tempo que a sua família e amigos reclamam e de que ela própria necessita.

Durante os fins-de-semana e feriados temos a Tia Paula, muito atenta e dedicada à família e aos sobrinhos (cinco), em particular aos mais pequenos.

Eu que acumulo estas duas Paulas, divido-me entre Lisboa, onde trabalho, e Sintra, onde vivo e reponho energias. É claramente o meu porto de abrigo. Quer uma quer outra são muito amigas do seu amigo, dedicadas, responsáveis e sonhadoras. Vivo um dia de cada vez, grata por poder sorrir.

O que é que a fez voltar a Angola tantos anos depois? Porquê em 2016?

Ora, muito fácil. Esta era uma surpresa que já há muito tempo queria oferecer a quem desde que regressei a Portugal, me recordo que todos os anos veio ver-me e, melhor, veio festejar todos os meus aniversários, a minha madrinha.

Ameacei ir a Luanda aos 30, não fui. Programei aos 35 não consegui. Achei que aos 45 já seria muito tarde e aos 40 havia um bom mote e pronto, foi assim. Avisei com um ano de antecedência que no mês de Setembro não trabalhava e, em cima da hora, lá tratei de tudo para ir. O engraçado, é que conhecendo como já me conhecem, ninguém acreditou… só mesmo quando tive o visto na mão acreditaram e ainda assim, duvidaram porque trabalhei até ao último dia e à última hora!

Sentiu-se imediatamente em casa? Quais foram as primeiras impressões?

Acredito que esta resposta só quem já passou pelo mesmo poderá compreender porque nem eu pensei que a experiência fosse assim.

Se me senti imediatamente em casa? Claro que sim! Nunca me senti no estrangeiro, e sei que estava fora da Europa. Mas aquele também é o meu país, eu fui criada e educada com aquelas raízes, está no sangue, não tenho outra expressão melhor, está no sangue…

O que é que Angola a fez sentir? Viveu várias emoções?

Angola fez-me sentir uma saudade desmesurada sem sequer conseguir explicar do quê.

A experiência da minha mãe, no ano anterior, foi muito emotiva, mas ela viveu toda a sua vida em Angola, estudou, casou, teve os filhos, viveu a guerra, toda a sua vida vivida é em Angola, é natural que o seu regresso a transportasse para esses dias. Já para mim não, eu tinha cinco anos quando voltei e nada fazia adivinhar as emoções que vivi.

À chegada ao aeroporto estava até decepcionada porque no bater das rodas do avião no chão eu não me emocionei, a minha mãe tinha-se emocionado. Ora bolas pensei eu, afinal a Terra não me diz nada. Saí do avião e igual. Tudo árido, sem emoções.

Como não consegui entrar no primeiro autocarro, no compasso de espera pelo segundo comecei a olhar à volta e cruzo-me com o nome do aeroporto que, por incrível que pareça, ignorância pura, não sabia qual era e, nesse instante, ao ler aeroporto 4 de Fevereiro as lágrimas começam a deslizar-me automaticamente pela cara, tal qual estão neste momento, e eu não consigo explicar porquê! Estava um Sr. ao meu lado que olhou para mim e sorriu com compaixão… deve-se ter percebido que eu estava de regresso. Mas como é que se explica esta emoção?!? Eu tinha cinco anos…

Diz a minha Madrinha que em pequena era um local onde me levavam a passear… pois, não sei se será ou não, mas que chorei quase convulsivamente, chorei…

Depois foi constatar que o país cresceu imenso, o centro de Luanda mais parece uma metrópole financeira, o trânsito é ligeiramente pior do que o do famoso IC19, mas o povo continua sorridente e optimista, o que para nós europeus é uma grande lição de vida.

Trago naturalmente um nó no peito por sentir que apesar do optimismo, do sorriso estampado no rosto, a verdade é que comparativamente a Portugal muitos vivem ainda em condições degradantes, que o fosso entre o pobre e o rico é chocante, mas que é esta a história de vida desta cultura e por conseguinte, todos aprenderam a viver assim e são felizes dessa forma. A mordomia do rico dá melhores condições de vida ao pobre, sim, é verdade, mas questiono-me muitas vezes se eu me habituaria a este modo de vida. É a pergunta que mais me atormenta desde que cheguei.

Qual o primeiro local que visitou?

Confesso que como o regresso a Luanda não foi uma visita turística tenho dificuldade em recordar-me qual foi o primeiro local que visitei. Eu estava em família e a grande curiosidade que sentia era saber como é que era o dia-a-dia da minha família em Luanda.

Apesar de ter ficado hospedada nos arredores de Belas, a verdade é que cirandei um pouco por todo o lado e um dos primeiros locais que fui talvez tenha sido a Barra do Dande, onde me deliciei com um extraordinário mufete. Angolana que sou, só nesse dia percebi o quanto gosto de mandioca cozida. Amei.

Por que outros espaços é que passou na sua visita?

Fui ao Miradouro da Lua que é maravilhoso, estive em Mangais e na Barra do Kwanza, também na praia de Cabo Ledo e fui às magistrais cascatas de Kalandula, enorme desafio para quem tem medo de alturas. Mas é magnífico. Vale a pena até pela viagem, a natureza é deslumbrante. Adorei os Kimbos! Na cidade visitei a fortaleza, a igreja onde fui baptizada (Paróquia de Nossa Senhora dos Remédios) e mais um ou outro museu pelos quais passei, mas que infelizmente estavam em recuperação, e só visitei pela metade, em particular o museu Nacional de História Natural de Angola que tive mesmo muita pena de não conseguir visitar. Para os que me desafiaram dizendo que Luanda não tinha correios CTT, ainda fui a um posto de correios e enviei um postal para Lisboa. Chegou cá a tempo e horas e por correio normal. Fala-se mesmo do que não se sabe.

Como é a Luanda actual para alguém que chega de fora? É um choque de realidade?

Honestamente em momento algum senti esse choque. Mas recordo, deixei Luanda com cinco anos de idade. Eu nasci e vivi no centro de Luanda. O prédio está igual, a minha casa igual está, e a marginal está mais turística. Mas era o meu espaço. Até o Hotel Panorama na ilha eu reconheci. As torres empresariais já ficavam mais para trás de minha casa e como não guardava essa memória da cidade, para mim, estava tudo igual (risos).

Por outro lado, aparentemente fui numa altura onde a presença da imigração não era tão notória, pelo que não foi choque nenhum. Estive em minha casa e com o meu povo. Confesso que se tivesse sentido este surto aí sim, seria um choque para mim. Sei que pode parecer um pensamento um pouco xenófobo mas a verdade é que tenho medo que pudesse descaracterizar aquela que é a cultura com que cresci.

O que é que mudava?

O impossível: o fosso entre o rico e o pobre. Esta é a resposta imediata.

De resto, o que todos nós gostaríamos de mudar mesmo estando em melhores condições do que Angola: melhores cuidados médicos, maior nível de alfabetização, e um sistema social equitativo e acima de tudo justo para todos.

E o que é que mais a marcou?

Sem desprimor para as riquezas e lugares lindos do país (não sei se há algum pôr-do-sol como o da ilha) o que mais me marcou foi sem dúvida nenhuma a minha visita ao prédio e casa onde nasci e vivi. Conseguem imaginar o privilégio? Foi um momento único, que nem oportunidade de agradecer convenientemente tive, pois chorava convulsivamente, mas se há metro quadrado que me transmitiu maior felicidade foi aquele… o meu compadre, irmão de infância, perguntou-me o que traria para Portugal se pudesse escolher, duas coisas dizia ele: e eu fitei-o e respondi, o meu apartamento em Luanda e o teu jipe. O primeiro porque é o reviver a minha feliz infância, a felicidade dos meus pais e nossa enquanto família, há tantas histórias vividas naquele apartamento, um pequenino T1 com cinco filhos, o segundo porque para além de me levar a todo o lado e ter permitido viver e sentir Angola, permitiu-me faze-lo da forma descomprometida, descomplexada e despojada (simples) como gosto de viver.

Mas posso dizer que de forma menos positiva também me marcou o rancor e mágoa que senti de alguns “retornados” que amargurados pela sua história de vida, certamente com razão, sempre questionaram as coisas maravilhosas que os meus compadres partilhavam nas redes sociais… talvez seja uma privilegiada, não vivi nenhuma guerra, não tive que fugir para lado nenhum, mas os meus pais viveram e enfrentaram o que acreditaram dever enfrentar para conseguirem garantir-nos um futuro, e acreditaram que seria em Angola. Ficaram lá. Fugiram, esconderam-se, protegeram-nos. Mas nunca nos passaram a parte negativa desta história, e têm tantas histórias para partilhar… só tenho memória das coisas boas, e das aventuras que as menos boas lhes deram a experienciar. Lamento pelas recordações que o país lhes faz viver porque estão a perder tanto e tanto do que tem de bom…

Voltar a Angola é uma hipótese?

Sem dúvida que sim. Aquele n.º 13 ainda vai ser meu novamente!

Os meus 40 anos em Angola à minha Madrinha Filomena Teles de Almeida ofereço.

Galeria

Permita anúncios no nosso site

×

Parece que está a utilizar um bloqueador de anúncios
Utilizamos a publicidade para podermos oferecer-lhe notícias diariamente.