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Tony Kikanga: “O maior apoio que tenho em Angola é do povo sofrido e trabalhador”

Nasceu em Angola mas foi em Portugal que subiu ao ringue pela primeira vez. Desde cedo mostrou o talento para o pugilismo e somou vitória atrás de vitória. Vê o boxe como o melhor desporto do mundo e defende que “a violência está em nós mesmos e não no boxe”. Critica severamente a falta de apoio e condições para os pugilistas nacionais, mas quer voltar ao país que o viu nascer, e contribuir para o seu crescimento, não só no desporto, mas a todos os níveis. Aos 43 anos, Kikanga promete pendurar as luvas apenas quando atingir o grande objectivo da sua carreira, ser campeão numa das maiores versões do boxe mundial, o que pode acontecer já no próximo ano.

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Kikanga, em primeiro lugar fale-me um pouco sobre si… Onde nasceu e cresceu, como foi a sua infância, que idade tem… 

Nasci e cresci em Luanda, no Rangel, comuna da Terra Nova, bairro Nelito Soares. Tive uma infância muito boa, com algumas dificuldades. 

Como surgiu a paixão pelo boxe? 

Surgiu nos finais dos anos 80, com a chegada dos cubanos e da grande selecção que Angola tinha, e que era um desporto familiar no bairro onde eu nasci. E tinha alguns ídolos como Xilola, Coelho, Manuel Gomes, Devasco. Essas pessoas foram um incentivo para mim. A partir dos anos 90, com os grandes combates do campeão Mike Tyson, e do grande Muhammad Ali, a minha paixão cresceu e ali nasceu um pugilista. Comecei a treinar no Dínamo Clube de Luanda.

O que sentiu quando subiu pela primeira vez a um ringue?

A primeira vez que subi a um ringue foi em Portugal, na zona de Santarém-Cartaxo, no campeonato regional de Lisboa. Senti alegria pois ganhei todos os combates, tornando-me assim campeão de Lisboa. 

Como são os treinos de um pugilista profissional? 

É muito duro e intenso, e temos três etapas: começamos logo pela manhã, bem cedinho, o primeiro treino, que é a nível de corrida e físico; depois o segundo treino é pela tarde, a nível de alongamentos e relaxamento; depois o terceiro treino, que é praticamente boxe táctico e físico. Treinamos cinco a seis horas por dia, e quase que não temos tempo de fazer nada. Dedicámos a tempo inteiro como numa profissão. Com muito sofrimento, muita dificuldade, disciplina, humildade, lealdade com o treinador e manager. 

Há mais de 25 anos que está radicado em terras lusas. Porque decidiu emigrar para Portugal?

Decidi emigrar para Portugal à procura de melhores condições de vida. Pois na altura havia guerra, fome, e não havia condições para um pugilista treinar ao mais alto nível. 

Quais as maiores dificuldades que enfrentou ao longo da sua carreira?

A questão dos patrocinadores… Ninguém chega a campeão sem um bom suporte financeiro e logístico por trás. E a vida de um pugilista não é fácil. Temos que brigar contra tudo e todos, dentro e fora do ringue, para ter as condições apropriadas. Não é fácil, porque muitas empresas não apostam no boxe porque não têm retorno.

Qual o melhor combate de sempre? E o pior?

O melhor foi em Tenerife, contra um pugilista cubano naturalizado espanhol, de nome Nelongo. Neste combate parecia perdido porque fui seis vezes ao tapete, mas consegui levantar e terminar o combate. Todo maltratado, mas no final os louvores foram para mim. Porque Nelongo na altura já era campeão mundial intercontinental.

O pior foi em Angola em 2012, no pavilhão da cidadela, quando rasguei o músculo do bícep no segundo assalto e continuei o combate com muita dor, sacrifício e muita angústia. Toda a gente pedia para eu desistir e eu não desisti. Mesmo com dor acabei o combate ao décimo assalto e ganhei o combate por KO, contra o pugilista romeno Adrian Cernaga. Foi o pior combate que fiz na minha vida. Eu sabia que tinha um país nas minhas costas. Eu podia morrer, mas desistir, jamais! Passado dois dias recebi uma felicitação da Presidência da República, assinada pelo Exmo. José Eduardo dos Santos, incentivando-me pela bravura conseguida neste combate. Pela primeira vez, o Presidente da República de Angola disse-me obrigado por não desistir e por representar bem a nossa bandeira.

Como e quando foi a sua entrada nos ringues europeus?

Foi em 1993 que comecei e ganhei o campeonato regional de Lisboa, depois parti para a cidade do Porto, onde tudo começou ao mais alto nível, e onde representei o Boavista e o Futebol Clube do Porto.    

O facto do Tony Kikanga ter chegado até onde chegou deve-se principalmente a quem?

Devo a muita gente. Ao Manuel Sierra Hernandez, meu empresário há mais de 20 anos, ao meu primeiro treinador, António Ramalho, e o homem que eu considero como meu pai em Portugal, José Pinto Lopes, treinador que me ensinou tudo o que havia para aprender no boxe, e que me levou pela Europa fora, e que hoje é considerado o pai do boxe em Portugal. Mas há muita gente que gostaria de referir os nomes e agradecer por tudo o que fizeram e continuam a fazer por mim. 

Qual o pugilista que mais o inspirou durante toda a sua carreira?

Muhammad Ali, o meu ídolo, Mike Tyson, Riddick Bowe, Rocky Marciano e Joe Louis que defendeu o título do WBC [Conselho Mundial de Boxe] 20 vezes consecutivas. 

Como vê actualmente o pugilismo em Angola? Há muitas mudanças desde que partiu para Portugal?

Sim muitas mudanças, mas para pior. Teve um retrocesso enorme… Não temos formação e as escolas de boxe não têm condições de treino e de higiene. Muita falta de material desportivo para prática da modalidade. Temos atletas a fazerem um combate por ano e são chamados Campeão de Angola. Não temos um campeonato de boxe profissional, instalações para estágio, e logística de apoio aos pugilistas. Nada melhorou, está ainda pior que antes. Ninguém esta interessado em apoiar o boxe, só se preocupam com medalhas quando há uma competição internacional. 

Sempre sentiu o apoio do público angolano?

Sim, o maior apoio que tenho tido em Angola vem do povo. Aquele povo sofrido, trabalhador, ainda guarda um tempinho para apoiar Kikanga. Lembro-me das zungueiras que me viam a correr nas ruas de Luanda, chamavam pelo meu nome e me davam frutas das suas vendas. Tenho muito orgulho no público angolano, que sempre me apoiou desde o inicio. 

Já se sagrou campeão do mundo da TWBA (Organização Transcontinental de Boxe) diversas vezes, e em 2011 venceu também o título de campeão do mundo de pugilismo de meio-pesado da UBC (Conselho Universal de Boxe), entre várias medalhas ganhas durante a carreira. Qual o prémio que mais o marcou e que recorda com mais saudade?

Foi o título da WBU [União Mundial de Boxe], o maior título que tenho até hoje. Recordo porque foi difícil para mim. O meu pai tinha falecido cinco dias antes do meu combate. Eu não sabia se adiava o combate ou combatia. A dois dias do combate o meu pai foi enterrado e depois do funeral despedi-me da minha família e fui para o estágio. Fiz o combate e ganhei por KO ao segundo assalto. Muita gente criticou-me por eu ter ido combater, mas o mais importante foi o apoio da minha família. Foi uma experiência para não esquecer. Hoje sou Campeão da TWBA, UBC, WBU... Sou aspirante oficial ao título da WBC, maior versão do boxe mundial, previsto para Fevereiro de 2017. 

Há algum título que gostaria de ter alcançado, mas ainda não conseguiu?

Gostaria de conquistar o título mundial do conselho de Boxe, WBC, ou IBF [Federação Internacional de Boxe], que são as maiores versões milionárias no mundo do boxe. Toda a minha vida lutei para chegar a estes títulos, e estou muito próximo de o conseguir. WBC, IBF E WBO são os títulos que nos podem levar a ter uma reforma garantida. WBC sempre foi o meu sonho e nunca estive mais perto de o conseguir. Os títulos mundiais que tenho são de versões menor e média, agora é que estou no patamar da elite mundial para poder disputar os títulos da WBC, WBO, IBF.

O pugilismo é um desporto rotulado como violento por muitas pessoas, mas para quem o pratica é visto como um jogo. Como atleta profissional, como vê esta modalidade?

Vejo o boxe como o melhor desporto do mundo. O boxe mal treinado pode matar ou ter lesões graves para a vida toda. O boxe tem que ser respeitado. Boxe não tem nada de violento, temos é que saber treinar forte e duro, com sofrimento, sacrifício e coerência, e ter poder de encaixe, rapidez e reflexos. Ter rigor, disciplina, respeitar muito os treinos, e levar a sério e fazer com gosto. Nunca tive uma lesão grave, como têm os atletas que praticam futebol ou basquetebol. Boxe nos ensina a ter auto-estima, bom astral, ser nós próprios, evita bulling e nos ensina a defender dos perigos da vida. Em Portugal quase toda gente pratica boxe. Está na moda para as senhoras, e é a forma mais fácil de perder e ganhar peso. Existe boxe de combate e boxe de manutenção. A violência está em nós mesmos e não no boxe. O boxe é o único desporto no mundo onde os pugilistas perdendo ou ganhando, cumprimentam-se no final com beijos e abraços sentidos. 

Contra quem gostaria de ter lutado e contra quem nunca gostaria de o fazer?

Graças a Deus combati com todos os melhores da minha categoria. Viajei lutando para todo lado. Europa, Ásia, África, América do Sul, Canadá, fui combater para todo lado. Tenho meus ídolos, que nunca gostaria de tentar combater com eles, como Muhammad Ali, George Foreman, Joe Frazier, Joe Louis e Mike Tyson.

Quando pensa pendurar as luvas, e em que projectos tem estado envolvido?

Estou no activo com muita vontade, rigor e mais combates feitos fora de Portugal, precisamente Geórgia, Macedónia e Sérvia. Só irei pendurar as minhas luvas quando eu for Campeão de WBC ou IBF ou WBO, títulos que sonhei toda a minha vida. Agora que estou tão perto não posso desistir assim. Seria como morrer no mar na beira da praia… Está em jogo muita coisa, meu país Angola, e Portugal, meu povo, meus empresários, gente que acredita em mim… A minha vida é uma carreira muito longa. Desde criança que ando nesta vida do boxe, talvez a mais longa carreira de um pugilista em África.  

Tenho alguns projectos já feitos e outros por terminar, a nível de ginásio. O meu futuro não vai passar pelo boxe, mas sim ligado a desportos variados de manutenção de alta performance. 

Por fim, quais os seus planos para o futuro? Voltar a Angola faz parte dos planos?

Sim voltar a Angola faz parte dos meus planos. Quero participar na reconstrução activa do meu país. Quero ver Angola melhor, Angola renovada, Angola mudada desportivamente, politicamente, civicamente e culturalmente. Ver uma Angola para todos sem distinção de raça, etnia, cor, política ou religião. Angola para todos sem excepção. Meus filhos choram para viver e reviver Angola.

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