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Sindika Dokolo: "João Lourenço forma, com a mulher, uma combinação interessante para o futuro de Angola"

Coleccionador de arte, casado com Isabel dos Santos, filha do Presidente, Sindika Dokolo pode ter dado a impressão de se dividir entre a arte e a política. Ele explica.

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A situação é cada vez mais preocupante na RD Congo, onde a violência se multiplica. Várias dezenas de milhares de congoleses viram-se obrigados a fugir da província de Kasaï, no centro do país, para encontrar refúgio na vizinha Angola, onde alguns foram maltratados ante a quase indiferença das autoridades de Kinshasa. Sindika Dokolo, ele próprio congolês, ficou sensibilizado com o sofrimento dos seus compatriotas refugiados em Angola, a quem prestou ajuda humanitária.

Geralmente discreto e de poucas palavras, coleccionador de arte e empresário, casado com Isabel dos Santos, considerada a mulher mais rica de África, manifestou a sua indignação nas redes sociais e mostrou algum pessimismo relativamente à situação na RD Congo, caracterizada por um processo eleitoral que está longe de inspirar confiança. Enquanto alguns lhe reconhecem a intenção de se candidatar às eleições presidenciais previstas para Dezembro de 2017, entre arte e política, Sindika Dokolo partilhou com a Le Point Afrique o seu pensamento.

Le Point Afrique: Por que teve este gesto humanitário para com este grupo de refugiados congoleses em Angola?

Sindika Dokolo: Há muito que me sinto sensibilizado com o sofrimento dos nossos compatriotas, nomeadamente no leste do país. Tenho várias associações de solidariedade – entre as quais a Téléma, no Congo, e uma associação cultural em Luanda – que já realizaram trabalhos de apoio em situações de crise. Desta vez, intervim por dois motivos: primeiro, porque a situação ocorreu no Dundo, onde a minha fundação actua no âmbito da recuperação das obras tchokwe roubadas no museu local, durante a guerra de Angola. Disponho de meios logísticos para agir no terreno; segundo, porque ao contrário das crises anteriores, que originaram migrações ou a deslocação de populações do Congo para Angola, esta apresenta casos chocantes.

Fiquei chocado. Vi imagens. Relataram-me testemunhos de pessoas que foram espancadas, violadas e esfaqueadas … Dezenas de crianças chegaram sem os pais, etc. É um cenário sem precedentes.

Aparentemente, as autoridades congolesas não reagiram aos maus tratos infligidos aos cidadãos congoleses na chegada a Luanda …

O que o Governo congolês diz e faz não me compromete e não me interessa. Temos a impressão que há uma retórica. Parece ter resposta para tudo, mas não resolve nada. Dizem que os Kamwina Nsapu (NDLR: as milícias acusadas, oficialmente, como responsáveis pela violência) são aldeões armados com bastões, mas constata-se que as pessoas são feridas por balas. Militares fugiram da RD Congo para Angola. Não sei se os perseguiram com bastões. Mas tudo isto parece encenação e, quando olhamos para o balanço humano, suscita suspeitas terríveis. Se olharmos para tudo o que se passa no leste, no Kasaï, no Congo central, etc, perguntamo-nos se não estamos perante uma estratégia ou política deliberada. 

Não é a primeira vez que os congoleses se refugiam maciçamente num país vizinho após uma vaga de violência interna. Poderá significar que estende a sua ajuda a outros refugiados congoleses?

Sim, já aconteceu. Não faço publicidade das acções humanitárias que levo a cabo. Tenho uma fundação em Kinshasa, com um orçamento de cerca de 1 milhão de dólares por ano. Ofereço ajuda aos orfanatos e aos hospitais, apoio o regresso à escola, etc. Estou já muito presente nestas situações. Mas isto está a acontecer no Dundo, onde se encontra a minha fundação, e fiquei muito chocado com o estado dos refugiados, com o seu sofrimento e os seus traumas. Fiz eco disso. No que me diz respeito, não se trata de fazer publicidade. Não tenho nada para vender. Quis somente alertar a opinião pública, manifestar a minha indignação e a minha preocupação. Nunca pensei, um dia, ver tal situação no Congo.

Em que consistiu esta ajuda humanitária?

Enviámos 200 toneladas de alimentos: arroz, óleo, farinha, etc. Havia uma série de coisas. Estamos a preparar uma nova entrega, desta vez de produtos farmacêuticos.

O Congo é, por assim dizer, o campeão do mundo dos deslocados, com cerca de 3,7 milhões de pessoas, segundo um relatório recente do Conselho dos Refugiados Norueguês…

São números difíceis de confirmar. Mas, se tivermos em conta cada criança, cada mulher, cada idoso, completamente desenraizados, que não sabem como vão sobreviver, é uma soma terrível de tragédias humanas. Enquanto congolês e africano, o que me preocupa muito é não podermos fazer um balanço da situação sem considerar as consequências deste drama nos próximos 20 ou 30 anos. Não se trata de abordar a questão apenas no plano humanitário, mas também no plano social a médio e longo prazo.

Estes deslocados e refugiados são populações sujeitas a todo o tipo de violência e abusos, que não vão à escola e cujo vocabulário não chega às 1.000 palavras. Será difícil reintegrá-las mais tarde. A sua reintegração hipoteca a estabilidade de todo o centro de África. Haverá sempre uma fragilidade e uma instabilidade que pesarão no futuro de toda a sub-região. É absolutamente impossível perspectivar uma situação de paz e de desenvolvimento futuro tendo em conta este tipo de realidade. É muito preocupante.

Como vê o fenómeno Kamwina Nsapu no Kasaï?

É muito difícil pronunciar-me sobre casos que têm tantas especificidades e particularidades culturais… estas populações têm uma religião particular. Existe um contexto sociopolítico e um contexto etno-tribal igualmente particulares. Contudo, constato que o balanço que o Governo fez sobre a gestão desta situação que, aparentemente, no início, era um caso de sucessão, é catastrófico. Surpreende-me que não tenha havido nenhuma sanção ou demissão. Em momento algum se tentou apurar responsabilidades. Esses aldeões parecem beneficiar de um apoio ou estarem instrumentalizados sob um novo formato completamente paramilitar.

O que pensa das sanções da União Europeia contra personalidades congolesas?

Desconfio sempre deste tipo de sanções. É um direito que é aplicado a alguns dirigentes e, por vezes, de modo subjectivo. No entanto, seria favorável a tudo o que possa contribuir para consciencializar o presidente Kabila que quer manter-se no poder a todo o custo, ainda que para isso tenha de instrumentalizar, comprar opositores, multiplicar os partidos e instruir processos inventados contra opositores que possam constituir um perigo para a sua estratégia de manutenção no poder. Não é solução.

Cada vez mais, manifesta-se nas redes sociais sobre a situação na RD Congo … a que se deve esta sua mudança de comportamento?

Nasci no auge do Mobutismo, durante a II República. É a razão pela qual não tenho nome próprio cristão. (NDLR: naquela época, os nomes cristãos eram proibidos no Zaire). Sei o que é viver num sistema de partido único, em que não temos o direito de exprimir uma outra opinião. Sei até que ponto é um bem precioso o facto de ter esta liberdade de expressão e a possibilidade de sancionar os responsáveis políticos com regularidade, num quadro transparente, legítimo e credível. Tenho a impressão que no Congo estamos a perder esta perspectiva, e eu, como cidadão congolês, não quero estar ausente deste combate em defesa das conquistas democráticas.

2017 é um ano eleitoral na RD Congo, pelo menos no papel. E a Constituição não autoriza Kabila a candidatar-se a um novo mandato… tem ambições presidenciais?

2017 não será um ano eleitoral simplesmente porque não houve vontade política de organizar o escrutínio em 2016, e porque não há vontade política de o fazer em 2017. O problema não é ter eleições a qualquer custo, mas restabelecer a paz no Congo e regressar ao trabalho. Para isso são necessárias eleições credíveis e transparentes. Hoje, dizem-nos: “vamos a eleições, é o mais importante”. Mas Moïse Katumbi não pode regressar porque foi alvo de um processo inventado. Não é a minha opinião, são as conclusões de um estudo aprofundado dos bispos que, penso eu, estão acima de qualquer suspeita. Se as eleições não são nem credíveis nem organizadas dentro dos prazos, aí está o grande problema. Que consequências teriam estes dois fatores na escalada da violência e da instabilidade que temos actualmente? Saúdo a atitude da União Africana que tenta ser solidária com o Congo e o Governo, e, ao mesmo tempo, manter um diálogo firme ao exigir ao Executivo que dê provas de boa vontade e que aceite o princípio de que não há transição pela força. Sabotar o processo para ensaiar a realização de um referendo, rever a Constituição, relegar as eleições para as Calendas gregas, organizar uma espécie de eleições ou uma farsa eleitoral… já nada disto é aceitável. É importante que o Governo congolês compreenda que muitas pessoas, e até mesmo a opinião pública congolesa, estão atentas à situação do país e que não mais será possível continuar a fazer pequenos truques de magia ou artifícios como tem acontecido até aqui. O Congo não precisa de mais políticos, de mais candidatos ou de homens providenciais. Não tomo a palavra por ter ambições políticas. Há políticos suficientes que o fazem. O que é importante para o Congo, é que viremos esta página, para que, amanhã, possamos reformar a vida política. Não tenho carreira política. Não sou candidato às eleições.

Tal não impede que seja alvo de ataques nas redes sociais por tomadas de posição que não agradam a certos meios congoleses …

Tudo o que não vai no sentido da realidade virtual criada pelo Governo, é tomado como traição, mentira ou ambição. O que eu pretendo é conseguir, com a minha palavra de patriota livre, exigente e que não faz cedências, inspirar outros congoleses que não têm ambições políticas. É preciso despolitizar a vida pública no Congo. Somos, sem dúvida, o país que a nível mundial detém o recorde do peso da vida política na economia, com as suas 26 províncias, os seus governos provinciais, as suas assembleias provinciais, os seus 500 deputados e os seus mais de 100 senadores.

O Congo sofre e agoniza com a super-politização da vida pública. É preciso aliviar tudo isto. Quero ser um pensador livre que propõe ideias, toma posições susceptíveis de inspirar e estimular os congoleses a conceber uma nova forma de coexistência, porque penso ser necessária.  Faço-o com a liberdade e a paz de espírito de quem não tem que construir um perfil político ou candidatar-se a eleições.

Quais são as suas relações com o ex-governador Moïse Katumbi, candidato declarado às próximas eleições presidenciais?

Tenho muita admiração por ele. Tanto no plano pessoal como pela maneira como gere os seus próprios negócios, ou como administrou a ex-província do Katanga. Seria inconcebível organizar eleições credíveis no Congo sem lhe dar oportunidade de apresentar o seu programa e ser aprovado pelo voto dos congoleses.

O seu voto iria naturalmente até ao candidato Moïse Katumbi?

É complicado. Eu não sei se seria correcto dizer por quem votaríamos. Mas sinto-me muito próximo das ideias e dos valores de Moïse Katumbi. Não conheço os outros candidatos. Na verdade, é uma perspectiva, uma questão muito teórica, porque não haverá eleições em 2017 e não haverá boas eleições em 2018. Estamos numa espécie de fuga para a frente permanente. Sou eu ou o desastre! Sou eu ou o Arrmagedon. Isto não é aceitável. Sou contra isso.

Como estão os problemas judiciais da família Dokolo com o Estado congolês?

Teria gostado de investir um pouco mais no Congo. Consegui desenvolver os meus negócios em Angola. Inspirei-me muito na experiência do meu pai e nos conselhos que me deu antes de morrer. Reproduzi simplesmente um modelo que ele tinha desenvolvido nos anos 60/70/80 no Zaire e que eu gostaria de ter aplicado no Congo. Mas, para isso, o poder actual deveria reconhecer que a minha família foi despojada e devolver-lhe pelo menos as coisas que lhe foram tiradas. É isso, o barómetro.

Ou, hoje, a sede do banco do meu pai continua a "pertencer" a um banco catanguês. Tendo em conta a história da minha família, não me vejo a meter-me na boca do lobo, uma vez que não são capazes de me devolver os bens que são meus por direito.

O poder muda de mãos em Angola em Agosto… conhece João Lourenço, o sucessor do seu sogro, Eduardo dos Santos, na liderança do país?

Sim, claro. É muito conhecido em Angola. Trabalhou muito no seio do MPLA. Para mais, ele conhece verdadeiramente a fundo os meandros do partido. Ele conhece a cultura e as mentalidades. É também um antigo militar – isto é importante para um país como Angola. Ele é da nova geração. Ele forma, com a mulher, uma combinação interessante para o futuro de Angola que está numa fase de consolidação do que pôde ser feito desde o fim da guerra. Muitos dos grandes projectos de construção lançados estão prestes a entrar em funcionamento, por exemplo, no domínio energético, há três ou quatro barragens que estão praticamente terminadas. Há grandes projectos de construção de portos e aeroportos, etc. Ainda que estejamos num período de crise, é um momento interessante para Angola, um momento de passagem do testemunho, privilegiando a estabilidade.

A chegada de João Lourenço pode influenciar as relações entre Angola e a RD Congo?

Eu não acredito que isso mude na essência. As relações entre os dois países regeram-se sempre por princípios que respondem a uma certa cultura política do MPLA e não a aspectos subjectivos como as relações pessoais. O interesse de Angola foi sempre o de estabelecer relações entre dois povos, duas nações, e não entre dois indivíduos. Penso que haverá uma grande coerência, continuidade e estabilidade…

Apesar de tudo, nestes últimos tempos, a situação é aparentemente tensa entre Angola e a RD Congo …

Penso que não se pode falar de uma situação tensa. Esta situação, com repetição de crises e falta de clareza sobre as suas origens, leva forçosamente a uma mudança de atitude na abordagem das relações de vizinhança. Não se trata de relações que esfriaram; trata-se somente de relações exigentes porque não podemos permitir a criação ou deixar que se criem zonas de instabilidade, nomeadamente na fronteira com os vizinhos. 

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