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Dois poemas custaram a João Mota três dias de prisão em Angola durante a guerra

Dois poemas ditos ao microfone de uma rádio de Angola, durante a guerra colonial, custaram ao actor e encenador João Mota três dias de prisão, durante o tempo em que esteve mobilizado na ex-colónia, entre 1966 e 1968.

: José Sena Goulão/Lusa
José Sena Goulão/Lusa  

Em entrevista à agência Lusa, o fundador d'A Comuna e professor de teatro, lembrou esse tempo de guerra e os dias de cárcere por ter dito dois poemas numa rádio em Luanda: um, o "Poema da Alienação", do contista e poeta nacionalista angolano António Jacinto (1924-1991), o outro do poeta português Carlos Queirós Ribeiro (1907-1949).

Um deles, o mais polémico, "Poema da Alienação", vinha na revista do Movimento Nacional Feminino, organização da ditadura de apoio à Guerra Colonial. Nos últimos versos, dizia: "Mas o meu poema não é fatalista, o meu poema é um poema que já quer e já sabe, o meu poema sou eu-branco montado em mim-preto a cavalgar pela vida".

Depois de uma longa permanência no mato e de ter partido os óculos para sair de lá, o furriel miliciano João Manuel da Mota Rodrigues conseguiu licença para uma escapada de cinco dias a Luanda. Aí encontrou um número da revista do Movimento Nacional Feminino, dos muitos enviados aos soldados nas ex-colónias.

Entre "Flamas e Plateias e outras revistas, sem saber bem o que eram ou o que lá estava escrito", encontrou aquela publicação e o poema de António Jacinto.

Desconhecendo o poeta e o seu pendor nacionalista, João Mota, que "tomava conta da acção psicológica" e conhecia pessoas na estação de rádio de Luanda, foi então dizer o poema, que emparelhou com outro de Carlos Queirós, o sobrinho "da Ofélia do Pessoa".

Saiu da rádio e foi para o cinema "todo contente". Mas depressa o mandaram apresentar-se às autoridades. Foi então que o detiveram e mantiveram encarcerado, contou à Lusa. "Safei-me" porque tinha guardado a revista no batalhão, com a evidência de se tratar de uma escolha do Movimento Nacional Feminino.

Mesmo assim, sujeitaram-no a interrogatório. Quiseram saber se conhecia o poeta, a sua obra, as suas ideias.

João Mota disse desconhecê-lo por completo. "Tinha ido da metrópole, não sabia nada disso. [...] Não conhecia, nem era obrigado a conhecer, sou de Portugal, não sou de Angola", disse então, como relatou à Lusa o antigo furriel que conhecia a Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa. Às autoridades, porém, garantiu que só conhecia poetas portugueses.

Foram "dois ou três dias desagradáveis", recorda. No início de 1968, regressou a Portugal depois de dois anos e meio de guerra.

Ainda que tenha feito animação por várias companhias, onde se representavam 'sketches' ou tocavam música, a memória dos camaradas de tropa que viu morrer e dos que ficaram feridos e estropiados continuaram a marcar-lhe os dias. Assim como os estrondos das armas, de tal forma que, em Lisboa, não foram poucas as vezes em que se atirou para o chão, quando ouvia tubos de escape.

"Não fui o único. Acontecia muito numa Lisboa cinzenta onde todos conheciam alguém que tinha feito a guerra ou estava na guerra", contou à Lusa.

João Mota lembra ainda a forma como se fugia a falar da guerra, "do lá fora". "E isso continuou também depois do 25 de Abril".

"Não se fez o tal luto. Foi muito duro. Quando vim da guerra apercebi-me de que a sociedade não estava feita para nós".

Durante a ditadura, falar era impossível pela "falta de liberdade", pela "censura enorme", em todas as áreas. Porém, também se conseguiu "ultrapassar a censura". Portanto, frisou, há sempre uma possibilidade.

João Mota considera que ainda "não se fala do antes do 25 de Abril" e que "não interessa falar das pessoas que lutaram" contra a ditadura. Pensa que tal acontece, porque para se falar delas, há que falar do Partido Comunista.

Ressalvando não ser comunista, sublinhou ter havido quem "lutasse muito" pela liberdade, pessoas que ficaram esquecidas, assim como se "esqueceram de uma coisa que é o povo".

Sob a ditadura, "o povo queria ser livre e ter resposta para a fome, para os seus problemas", enquanto os intelectuais ansiavam "por falar, por escrever". Não o poder fazer, "era terrível, um matar de outra maneira".

Ao lembrar uma vida entregue ao teatro, João Mota frisou ainda a participação d´A Comuna nas campanhas de dinamização no pós-25 de Abril, o que lhes permitiu "ficar a conhecer o que se passava no país".

Sem gostar de política nem de partidos, recorda que a companhia que fundou com Carlos Paulo, entre outros actores, teve pessoas de todos os quadrantes político-partidários.

Admirador confesso de "pessoas e não de partidos", João Mota diz que há quem o considere "um pouco anarca". Mas "se ser anarca é ser exemplo e ser de um rigor e de uma disciplina muito grande, então sou anarca", admitiu. "Mas anarquia não é balda. Cuidado."

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