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África transformou-se num “território de disputa” entre o Ocidente e a Rússia

Analistas consideraram que a invasão russa da Ucrânia há um ano transformou África num "território de disputa" entre o Ocidente e a Rússia e China, que desafiam o domínio dos Estados Unidos e União Europeia no sistema internacional.

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Os impactos da guerra lançada pela invasão russa da Ucrânia a 24 de Fevereiro de 2022 "têm-se feito sentir no aumento da importância estratégica de muitos estados africanos para diferentes parceiros internacionais", sublinhou à Lusa Priyal Singh, investigador do Institute for Strategic Studies, na África do Sul.

"Vemos isto, por exemplo, na frequência crescente com que altos funcionários estrangeiros, ministros dos negócios estrangeiros e diplomatas visitam o continente e conduzem diferentes interesses diplomáticos, muitas vezes ao mesmo tempo, tentando construir relações mais favoráveis com determinados estados africanos", acrescentou o investigador.

O facto de o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, "a meio de uma guerra lançada pelo seu país, ter tirado tempo para ir três vezes a África", a última das quais em Janeiro, "mostra o quanto o continente é importante para Moscovo", diz Joseph Siegle, director de investigação do Africa Center for Strategic Studies (ACSS), um instituto de análise em Washington financiado pelo Congresso norte-americano.

África é importante para Moscovo, assim como para os Estados Unidos, que convidaram os líderes africanos a visitar Washington em Dezembro para uma cimeira que não se realizava há oito anos; mas também para a China, cujo novo chefe da diplomacia escolheu o continente no início de Janeiro como o seu primeiro destino, visitando cinco países - um dos quais Angola, mas não a África do Sul.

Vários chefes de Estado e de Governo europeus têm visitado no último ano o continente, que recebeu também a visita do chefe da diplomacia da União Europeia (UE), Josep Borrell.

O continente tem vindo a ser "cortejado" pelos maiores actores geopolíticos quase desde o início da guerra, logo quando a 2 de Março de 2022 a Assembleia Geral das Nações Unidas mostrou que África estava dividida ao meio na condenação da invasão russa da Ucrânia.

Algumas cidades africanas emergiram no último ano como destinos frequentes dos mais destacados líderes dos vários blocos, e, "de repente", no seio do próprio continente, "uma conversa muito vigorosa sobre independência, libertação, anti-apartheid, colonialismo, foi reiniciada por causa do conflito na Ucrânia", destacou Paul Nantulya, investigador associado do ACSS.

A guerra, segundo Singh, acabou por demonstrar que "existe uma diferença significativa na visão do mundo entre as nações desenvolvidas e os estados africanos, que vêem o sistema internacional a partir de pontos de vista muito diferentes dos seus parceiros ocidentais".

Por cinco ocasiões desde o início da invasão, a última das quais a 14 de Novembro último, a ONU votou a condenação da Rússia, mas, independentemente dos princípios em causa, o padrão do voto africano nunca se alterou significativamente, com quase metade dos 54 países do continente representados a absterem-se de condenar expressamente Moscovo, ou simplesmente a abandonar as diferentes salas minutos antes de cada votação.

"Diplomaticamente, a Rússia está a sair-se bastante bem neste aspecto", sublinhou à Lusa Tom Lodge, especialista em política africana e professor de Estudos de Paz e Conflitos, na Universidade de Limerick, Irlanda.

Siegle também reconhece que "Moscovo tem conseguido reforçar a sua influência em África no último ano", utilizando vários instrumentos, um dos quais a condução de "campanhas de desinformação".

Moscovo está a desenvolver "uma interferência activa em eleições, tem esquemas de acesso a recursos, negociou acordos no seio da OPEP cujos detalhes se desconhecem, medidas que contribuem para a instabilidade em África, incluindo casos em que é colocada em causa a soberania popular", acrescentou, numa referência ao apoio russo a regimes resultantes de golpes de Estado no Sahel, como no Mali e no Burkina Faso.

Tudo isto "acontece ao mesmo tempo" que "a Rússia é muito eficiente na gestão da narrativa sobre a guerra, de que tudo o que aconteceu na Ucrânia é da responsabilidade do Ocidente", sublinhou ainda Joseph Siegle.

A "gestão da narrativa" russa tem um contexto histórico que favorece o que Nantulya descreve como uma "relitigação política" em curso no continente, à medida que se instala em África uma "nova Guerra Fria", na expressão do então presidente da União Africana (UA), Macky Sall, que disse à Assembleia Geral da ONU em Setembro que o continente recusava "ser o terreno fértil" dessa disputa.

"A Rússia goza de simpatias em África, quer devido ao papel da União Soviética nas guerras de independência, quer porque as potências ocidentais nessas guerras nunca apoiaram os movimentos de libertação africanos, pelo contrário, operaram contra eles", apontou Nantulya.

"Se olharmos para as lideranças políticas, sobretudo nos países do sul de África, mas também para os seus quadros militares superiores, cerca de 90 por cento foram educados na Rússia soviética, outros formados em Cuba, outros ainda na Alemanha Democrática, e os restantes na China", acrescentou o investigador do ACSS.

Priyal Singh disse também que África emergiu como um "campo de batalha ideológico e normativo" disputado por "agrupamentos geopolíticos oponentes".

"Há um grande impulso para a Rússia, Estados Unidos e UE darem prioridade a maiores quantidades de comércio com África, através da oferta de maiores concessões, proporcionando alívios da dívida, mais pacotes de ajuda ao desenvolvimento e assim por diante, mas os estados africanos não conseguiram até agora alavancar estrategicamente a sua posição face à Rússia, por um lado, e aos Estados Unidos e União Europeia por outro", tanto a nível continental como regional, considerou o investigador sul-africano.

Na perspectiva de Tom Lodge, talvez não venha dessa ausência de estratégia um mal maior. "Olhando para os grandes interesses de poder estrangeiros que estão a convergir para África, não é claro quem são os bons e os maus, não creio que os novos compromissos sejam particularmente benignos, e não creio que venham a reflectir-se em benefícios importantes para um grande número de pessoas em África", concluiu o professor irlandês.

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