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Padre Estêvão trocou Portugal pelo leste de Angola há meio século e conta ficar

A paróquia é dedicada a Nossa Senhora de Fátima, com um santuário, e é dirigida por um padre beneditino da cidade portuguesa de Viana do Castelo que vive num palacete construído por portugueses, mas tudo se passa na aldeia de Moxico Velho.

Manuel Roberto:

A 1300 quilómetros de Luanda, o padre Estêvão, de 83 anos, missionário beneditino em Angola desde 1962, recebe a Lusa no seu palacete do tempo colonial, votado ao abandono: "Vi Ana no Castelo e ficou a ser Viana do Castelo. Lá de cima de Santa Luzia".

Sorridente, começa por recordar a terra natal, o rio Lima e o santuário de Santa Luzia, que não vê há mais de meio século.

A memória já não é a mesma, mas com a ajuda de duas madres mexicanas ali colocadas pela diocese do Luena, o padre português, que nunca regressou à terra natal de Chafé, em Viana do Castelo, ainda reza missa quase todos os dias.

"Sempre! Então? Sou eu pároco, então pensavam que eu era o quê? Que andava só no capim", questiona, tocado pela pergunta sobre se a idade não pesa na hora de celebrar a eucaristia no Moxico Velho.

De cabelos brancos compridos, porque não deixa cortar, batina impecável e uns sapatos pretos oferecidos por um "engenheiro" que alterna com as únicas sandálias "em condições", o padre, de nome Vitorino Pimenta Simões, recusa, sem hesitar, a possibilidade de regressar a Portugal, ou de sequer deixar a aldeia.

"Ir embora? Mas se eu não fiz mal a ninguém", diz, de forma natural, sentado na cadeira velha de madeira no alpendre do palacete que lhe serve de casa há décadas.

"Ele não quer ir-se do Moxico Velho porque sente que pertence cá. Já é mais angolano que português", explica a madre mexicana Margarita Flores, uma das duas missionárias que ajudam a tomar conta do padre português.

"Ele é muito teimoso", admite a missionária, no Moxico Velho desde Janeiro de 2015.

Ao fim de alguns minutos de conversa, o padre Estêvão atira a explicação sobre o porquê de ter decidido mudar de nome ao entrar para os beneditinos.

"Estava farto dos abusos com o nome, 'boi torino' [Vitorino]", recorda, sobre os tempos da juventude em Viana do Castelo.

Chegou a ser professor de grego, onde de resto foi buscar a inspiração - Sthéphanos - para o nome eclesiástico que assumiu, ainda antes de partir para o leste de Angola: "Pedi para vir para as missões, foi só isso. Ninguém queria vir e eu lancei-me".

Em Viana do Castelo diz ter deixado um irmão gémeo, polícia, José Pimenta Simões.

"O meu irmão gémeo era polícia e morreu e eu estou vivinho", brinca, depois de um almoço, como sempre, nos últimos anos, preparado pela irmã Margarita.

"Eu gostava de cozinhar, mas agora elas trazem-me tudo. Nem peço nada", diz.

A missionária mexicana descreve à Lusa o padre Estêvão como "uma pessoa de oração" que "nunca se preocupou" com o próprio conforto e "agora menos".

"Para mim é uma pessoa muito linda. Tem um coração muito agradável, apesar da sua velhice. É uma pessoa santa", assume a madre.

Com cerca de 800 pessoas a viver no Moxico Velho, a igreja Católica, através da paróquia da Senhora de Fátima, representa o único suporte à comunidade. Por ali, o povo vive do que a terra dá.

Não há escola além do ensino garantido pelas madres, não há electricidade ou sinal de telemóvel e a viagem para a capital da província, Luena, obriga a um tortuoso e perigoso caminho, pela mata, capim e lama, de mais de 45 minutos de carro, para percorrer menos de 10 quilómetros.

Mas nem sempre foi assim, até porque o que é hoje o Moxico Velho já foi a capital da província, no arranque da colonização portuguesa do leste do país, com as primeiras expedições do final do século XIX, lideradas pelo tenente-coronel Trigo Teixeira.

Construído em adobe, mas de arquitectura tradicional colonial portuguesa, o velho palacete onde hoje vive o padre Estêvão foi das primeiras construções da antiga capital e serviu de residência do primeiro governador português da região.

"Foi do D. António de Almeida, que viveu aqui", recorda o padre.

A construção da linha do comboio, ligando o litoral ao leste, obrigou a mudar a capital para junto do rio Luena, em 1956. Os portugueses chamaram-lhe vila do Luso, mas a independência de Angola mudou-lhe o nome, depois de 1975, para Luena.

Mudanças a que o padre foi assistindo, sozinho. Na guerra colonial chegou a ser raptado por guerrilheiros do MPLA, que o levaram a percorrer toda a província, período durante o qual celebrava missa e ensinava música, até ser resgatado pela tropa portuguesa.

"Acalmei tudo", recorda.

Além de estantes carregadas de livros, no interior da casa, com praticamente um século, até existem interruptores. Mas sem gerador ou electricidade da rede pública, de nada lhe servem.

A casa também está em avançado estado de degradação e o próprio bispo do Luena explicou à Lusa que já o tentaram realojar, numa casa nova, mas sem sucesso.

"Ele não quer sair, talvez seja por estar habituado àquele estilo de vida", disse o Bispo Tirso Blanco, reconhecendo, sobre o padre Estêvão, o mais antigo da diocese, que "passou por muitas vicissitudes" no Moxico.

"Mas está no lugar que para nós é o berço da evangelização", conta ainda o bispo, recordando que os primeiros missionários católicos, beneditinos, chegaram em 1933 ao Moxico Velho e que dali partiram para as províncias do leste do país.

Regressando ao interior da velha casa, de telhado em madeira que ameaça ruir a qualquer momento, a comida deixada pelas madres ainda está por arrumar, juntamente com a vela que mais tarde iluminará o interior, quando o sol descer, depois das 17h00.

Na aldeia existe um santuário, ainda hoje dedicado à Senhora de Fátima, onde em dias especiais reza missa, e a igreja paroquial, que diariamente, às 06h00, recebe a eucaristia. Os paroquianos são os camponeses vizinhos, que vivem em casas de adobe, algumas resistentes a décadas de chuvas fortes, típicas do Moxico.

Resistente é, de resto, outra palavra que se aplica ao padre Estêvão, que sobre os dias que ainda vai estar no Moxico Velho também não hesita: "São os que Deus quiser".

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