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Descendentes dos primeiros escravos da América reencontram-se com as origens em Angola

Há mais de quatro séculos, um africano foi levado num navio negreiro para a América, onde trabalhou numa plantação da Virgínia. Hoje, os seus descendentes reencontram-se em Angola com a memória dos antepassados, celebrando coragem e força dos sobreviventes.

: Ampe Rogério/Lusa
Ampe Rogério/Lusa  

É uma visita "dolorosa" e emotiva a que Wanda Tucker, acompanhada do irmão, Vincent Tucker, e da prima, Carolita Cope, relatou à Lusa à saída do Museu da Escravatura, em Luanda.

Um momento que faz despertar memórias que não viveu, mas que sente através das histórias que lhe foram transmitidas em família, e que através da investigação académica a trouxe por estes dias até Angola, para percorrer os passos dos seus antepassados, os primeiros escravos angolanos a chegarem ao território dos Estados Unidos da América (EUA), na Virgínia, então uma colónia britânica, há 400 anos.

Os Tucker serão descendentes de Antoney, ou António, que chegou ao actual território do estado norte-americano da Virgínia em Agosto de 1619, a bordo de um navio português com outros 20 escravos de Angola, para trabalhar na plantação do capitão William Tucker, em Point Comfort, atual Fort Monroe.

A emoção de Wanda ao falar após a visita a este local emblemático, instalado na Capela da Casa Grande, perpassa através das pausas, algumas frases interrompidas e olhos húmidos.

Era neste templo do século XVII que os escravos eram baptizados antes de embarcarem nos navios negreiros que cruzavam o oceano Atlântico em direcção à América.

E apesar de ser a segunda vez que aqui está, ainda é "muito doloroso, muito duro", sentir a vivência dos que por aqui passaram que lhe permitem perceber melhor os trajectos da escravatura antes de chegar à costa da Virgínia onde reside e o papel da religião na brutalidade deste comércio feito em nome do lucro.

Esta é uma das primeiras etapas do percurso da família que chegou na Segunda-feira a Luanda, a convite do Presidente da República, João Lourenço, e que segue esta Quarta-feira para a província de Malanje onde irá visitar alguns dos mais relevantes pontos históricos e turísticos da região.

Foi a historiadora e genealogista Thelma Williams, que através dos relatos da sua avó, que os tinha também ouvido da sua avó, foi partilhando as histórias com a família: "Nós somos descendentes da primeira criança africana negra – nessa altura não conhecíamos Angola – nascida nas colónias britânicas, nós somos descendentes de William Tucker. Os seus pais, Isabel e Antoney foram levados para lá em 1619", disse Wanda Tucker à Lusa.

Mais recentemente, através da pesquisa de historiadores e académicos, a família Tucker descobriu que os seus antepassados eram de Angola.

"Por isso, esta vinda a Angola dá-nos uma perspectiva mais alargada sobre as origens desse comércio de escravos que trouxe os nossos antepassados à Virgínia em 1619", sublinhou a norte-americana afrodescendente.

Depois de uma primeira visita em 2019, Wanda Tucker regressou agora a Angola, acompanhada dos familiares, para continuar a construir uma relação com o país, "em espírito e em conhecimento", esperando aprender mais, não só sobre o comércio de escravos, mas sobre a herança imaterial deste legado.

"Os talentos, os saberes, as dádivas que os nossos antepassados nos transmitiram e que não se perderam e que continuam a ser passadas ao longo dos anos: a sua coragem, a sua força, a sua resiliência, a sua fé", são os grandes objectivos desta busca.

Wanda Tucker realçou "o poder" dos que sobreviveram naqueles navios e que está ligado à construção da identidade afro-americana.

"Eram dois dos milhares de sobreviventes. Milhares morreram, mas os nossos antepassados sobreviveram e tiveram filhos e os seus filhos tiveram filhos, em tempos difíceis. É por isso que cá estamos, por causa deles", emociona-se.

"Muitos afro-americanos identificam-se como afro-americanos, mas não sabem o país de origem dos seus antepassados, por isso não podem fazer essa ligação. A nossa família fez essa ligação e podemos até dizer que somos angolano-americanos", acrescentou.

Para Wanda Tucker, esta "ligação dual" possibilita também uma dupla perspectiva histórica, envolvendo duas culturas e uma narrativa mais vasta.

"Estamos a construir pontes para desenvolver, nos dois continentes, mais conhecimento, educação e compreensão, uma narrativa mais equilibrada, uma verdade que ainda não foi contada", defendeu a representante da família Tucker.

Wanda Tucker está empenhada em mostrar o melhor de Angola e acredita que é pelas pequenas coisas que se deve começar.

"A educação demora tempo, não muda facilmente, os sistemas políticos não mudam facilmente, mas quando conseguimos mudar os corações das pessoas, então as pessoas vão ficando mais interessadas, querem investir, querem vir a Angola. Queremos ajudar as pessoas a perceber que a sua ligação aos angolanos, a sua descendência não é algo que envergonhe, mas um motivo de orgulho", sublinhou a afrodescendente, que quer que a sua família seja um símbolo "dessa força, desse amor, dessa resiliência".

Da vida do seu antepassado, William Tucker, o primeiro afrodescendente documentado nascido numa das 13 colónias britânicas que deram origem aos Estados Unidos, pouco se sabe, a não ser a data de nascimento – 1624 – e que foi baptizado com o mesmo nome do capitão para quem os seus pais, libertados em 1635, trabalhavam.

Mas a sua memória perdurará através dos seus descendentes e do seu lugar na História como a primeira criança de origem africana a nascer em solo americano.

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