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Inocêncio morreu há dois anos numa manifestação. Família continua sem saber porquê

Inocêncio de Matos foi morto há dois anos durante uma manifestação, em Luanda, quando Angola celebrava 45 anos de independência. Até hoje os responsáveis não foram levados à justiça e a família procura ainda esclarecer o que aconteceu.

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Era um "Dia da Dipanda" especial, em que Angola comemorava 45 anos de independência, conquistada após 14 anos de guerra contra a potência colonial portuguesa, mas a covid-19 tirou brilho às celebrações daquele 11 de Novembro.

O ponto mais alto foi a inauguração de um hotel nacionalizado pelo Presidente, João Lourenço, à mesma hora que se acercava das ruas de Luanda uma manifestação não autorizada devido às restrições da pandemia. Mesmo assim, milhares de jovens quiseram expressar o seu descontentamento com as condições de vida, juntando-se a um protesto que acabou ensombrado pelos confrontos entre polícia e manifestantes, várias detenções e a morte do estudante de 26 anos.

Laura Macedo, activista e uma das organizadoras da marcha que teve lugar nesse dia, tem acompanhado a família desde então e continua também à espera que se faça justiça.

"Senti-me um bocado responsável por aquilo e acompanhei (a família). A verdade tem de vir ao de cima, nós temos de lutar pela verdade", exigiu, numa entrevista à Lusa.

Sobre as circunstâncias em que se deu a morte de Inocêncio de Matos "Beto" permanecem as interrogações.

Testemunhas oculares dizem que o estudante foi atingido na cabeça por uma bala quando a polícia tentava travar o avanço dos jovens manifestantes e morreu no local. Um médico contou, no entanto, outra versão ao canal público televisivo angolano (TPA), segundo a qual o jovem chegou com vida ao hospital, mas não sobreviveu a uma intervenção cirúrgica.

Neste relato, o universitário, que frequentava o curso de Engenharia Informática da Universidade Agostinho Neto, teria sido atingido na cabeça por um "objecto contundente" que poderá ter sido "um pau, um pedaço de metal, de ferro".

A polícia, por sua vez, descartou responsabilidades e afirmou que Inocêncio teria caído quando fugia dos agentes, que não usaram munições reais.

Os resultados da primeira autópsia não foram aceites pela família, que pediu um segundo exame independente, com a presença de um fotógrafo. Segundo o seu advogado, Zola Bambi, tudo aponta para que o ferimento que causou a morte de Inocêncio de Matos tenha sido provocado por um projéctil, coincidindo com a versão das testemunhas.

"A única certeza que temos é que a versão da polícia não é a correcta, a primeira versão que a polícia traz a público é que o Inocêncio bateu com a cabeça no lancil, ninguém bate com a nuca no lancil", comentou Laura Macedo, junto do Mural da Cidadania, onde uma pintura imortalizou Inocêncio de Matos ao lado de outros defensores dos direitos humanos e da liberdade.

"Queremos que sejam apresentados os autores, a polícia tem de saber, foi a polícia que pôs os homens na rua, tem de saber quem tinha balas, quem estava naquele momento a travar os manifestantes", reclamou a activista angolana, enquanto os processos movidos pela família emperram na justiça.

Laura Macedo lembra que "os miúdos" que participavam no protesto se tinham ajoelhado e levantado as mãos "para mostrar que não tinham nada a ocultar".

"Foi nessa posição que o Inocêncio foi atingido, há testemunhas", frisou.

A activista apontou também as consequências da tragédia sobre a família, "que ficou muito dividida", entre os "do sistema" que tentaram abafar o caso e outros parentes que admitem ter sofrido pressões.

A casa de Luanda, no bairro de São Pedro da Barra, onde vivia Inocêncio, foi abandonada, a família dispersou e Alfredo de Matos, o pai de Inocêncio, falou à Lusa a partir do Namibe, onde se encontra actualmente a residir e a trabalhar, lamentando que os assassinos de Inocêncio estejam em liberdade.

"Temos estado envolvidos numa serie de diligências, vários contactos, mas infelizmente continua na mesma", afirmou, assumindo que a família ficou "profundamente abalada" e "traumatizada" com a perda de "um menino" com quem todos contavam.

As cartas que escreveu à Assembleia Nacional e ao Presidente da República não tiveram resposta.

"Ninguém se importa em fazer justiça pela morte do meu filho. Não há vontade dos órgãos de justiça em proceder à justiça, as autoridades angolanas não querem fazer justiça", desabafou.

A somar ao sentimento de injustiça, disse terem sofrido "insultos da parte de alguns indivíduos", provavelmente ligados ao caso, e que foram "de certo modo" pressionados.

"Uma série de obstáculos no processo, inviabilização no atendimento, somos atendidos de maneira ríspida, quase ninguém se dispõe a falar sobre o assunto, uma serie de situações", apontou.

Para Laura Macedo, o fatídico acontecimento não mudou a maneira como a polícia reage nas manifestações, que passaram praticamente a ser impedidas.

"A polícia pura e simplesmente não permite as manifestações, aborta as manifestações a partir dos bairros de onde vêm os manifestantes. Os poucos que conseguem chegar ao local de concentração são presos. Tivemos várias prisões antes das eleições, incluindo pessoas que nem estavam em manifestações", denunciou.

A activista afirmou que as eleições deixaram "mágoa e tristeza" junto de muitos angolanos e só por isso não apareceu ainda "a força interior" para se promoverem novos protestos, pois "motivos não faltam".

Inocêncio de Matos é homenageado na Sexta-feira junto à Igreja de São Domingos, com uma iniciativa que reúne amigos, familiares e activistas num evento que terá depoimentos, música e declamação de poesia.

Um encontro que Laura Macedo espera também que marque o final do período de reflexão pós-eleitoral para "voltar à acção".

"A polícia e o Governo sabem o que têm de fazer, têm de aceitar, têm de ser democratas", apelou.

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