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Saúde

Mónica, a enfermeira portuguesa que toca vidas em Angola

Mónica. Vinte e oito anos. Enfermeira. Portugal viu-a nascer, Angola obrigou-a a crescer. Como milhares de portugueses, fez as malas e cruzou o Atlântico. Por dinheiro? Não. Porque “trabalhar em saúde é querer ajudar”. E Angola precisa de ajuda.

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Aqui sentiu “uma magia que não existe em todo o lado”. Testemunhou pobreza, fome e sofrimento na primeira pessoa, mas é diariamente recompensada com uma felicidade que não pode ser comprada. Em cada sorriso sincero, em cada abraço apertado, em cada palavra de agradecimento. Regressar? Só quando sentir que não fará mais a diferença. Por agora basta-lhe a satisfação de saber que pode deitar-se todos os dias com a sensação de missão cumprida.

Mónica, antes de mais fale-me um bocadinho de si…

Sou a Mónica e tenho 28 anos, nasci numa pequena localidade portuguesa onde as pessoas vivem da indústria e da agricultura, tive uma infância feliz… estudei, brinquei, ajudei os meus pais e avós… Valores como a humildade, a partilha, a sinceridade, o rigor e a justiça sempre fizeram parte do meu dia-a-dia. Com o passar dos anos tornei-me militar e licenciei-me em Enfermagem pela Escola Superior de Enfermagem de Lisboa. Nunca foi um sonho de uma vida, mas é algo que faço com o maior carinho e dedicação.

Como é que surgiu a ideia/oportunidade de vir para Angola?

Trabalhar em saúde é querer ajudar, querer tocar a vida das pessoas e deixar que elas toquem as nossas… O local no Mundo onde havia mais necessidade de ajuda, o local onde trabalhar em saúde era emergente era África, assim sendo, enviei currículos para toda a África e surgiu Angola.

Porquê Angola?

Porque só faria sentido eu fazer o sacrifício de estar longe da minha família, dos meus amigos, do conforto do meu lar… só faria sentido eu encarar o sofrimento da distância e da perda se fosse junto daqueles que sabem muito bem o que é sofrer, o que é sangue, suor e lágrimas… muitos deles cresceram em guerra, outros nasceram durante a mesma… e há ainda aqueles que nasceram e o país já não tinha guerra, mas tinha pouco mais que escombros e campos minados.

Lembra-se do dia em que aterrou no nosso país? Quais foram as primeiras impressões?

Lembro-me bem do primeiro dia que cheguei a Angola. O sol ainda não tinha nascido e a chuva caia… Ao longe era possível ver os musseques, os municípios, as cidades… um amontoado de construções muito singulares….

Quando saí do avião senti aquela brisa quente e o cheiro a terra molhada, “isto é África”, foi o que pensei.

Surpreendeu-se de alguma forma? Ou seja, vinha com uma ideia pré-concebida acerca da nossa terra e quando cá chegou essa mesma ideia transformou-se?

Para mim falar em Angola era falar em guerra, pobreza, fome e sofrimento…

Infelizmente vi tudo isso, mas consegui ver mais… aqui há uma magia que não existe em todo o lado, aqui os sorrisos são sinceros, os carinhos também, a felicidade aqui é barata, custa pouco… mas não há nada que a compre.

Em cada metro quadrado podemos encontrar uma bela tela de fundo para uma fotografia, em cada pessoa um dialecto diferente e em cada rosto marcas de vida, da guerra, de sabedoria.

As crianças em Angola não se permitem ser crianças por muito tempo. Brincam com a água, com pedras, com paus… A maioria das vezes fazem os seus próprios brinquedos, mas algumas vezes não se podem sequer permitir brincar.

É muito vulgar ver-se uma criança com não mais que seis anos a guardar uma manada de bois ou de cabras. Há também as crianças que podem ir à escola, as meninas que se permitem ter vaidade, que entrançam o seu cabelo, que pintam os seus lábios, que sabem que existe um mar que banha esta terra.

O povo em Angola é desconfiado, mas tem um grande coração, o calor do clima e o calor humano fazem com que a distância custe menos… A cultura é tão rica e aprende-se muito com este povo e aqui acabamos por dar valor às coisas que nem sabíamos que gostávamos.

Há quanto tempo cá está?

Fará dois anos no final do ano.

Em que províncias é que já teve oportunidade de trabalhar?

Conheço quase todas as províncias de passagem por alguns dias, a única onde nunca estive foi Cabinda. As que passei mais tempo e onde trabalhei foram: Kuando Kubango, Moxico, Lunda Norte, Lunda Sul, Malange, Uíge, Bengo, Luanda, Huambo, Huíla, Kwanza Norte, Kwanza Sul e Benguela.

Quais foram as principais dificuldades que encontrou para pôr em prática o seu trabalho? Fale-me um pouco da sua experiência em campo.

Infelizmente os cuidados de saúde não são acessíveis a todos, não só porque é caro, mas muitas vezes porque as pessoas estão tão doentes que chegam aos serviços de saúde tarde demais…

No interior do país as pessoas estão deslocadas em zonas remotas, muitas vezes existem hospitais e postos médicos, não existe é material médico… No fundo, para se trabalhar em Angola e para fazer com que valha a pena é preciso ter muita imaginação e força de vontade… É preciso acreditar nas crenças das pessoas, aceitar a medicina alternativa e fazer o nosso melhor, é preciso ter fé, muita fé… porque quando tudo falhar, temos que acreditar que há alguém a olhar por nós e vai ajudar-nos a ajudar aquelas pessoas.

E no que toca às necessidades da população em termos de saúde? Os cuidados primários ainda não são uma realidade para todos? Sente que tem havido mudanças neste sentido?

Os cuidados primários infelizmente não são uma realidade para todos, noto que há um esforço muito grande no sentido de garantir o mínimo, mas temos que ser realistas, porque há um grande caminho a percorrer…

Certamente tem muitas histórias para contar. Há alguma de sucesso que queira partilhar?

Em Angola caminhei pelo desconhecido a par com animais que só tinha visto no zoo, dancei músicas que não conhecia, falei outras línguas, aprendi a fazer banquetes com farinha água e pouco mais, transportei crianças às costas, vi um pôr-do-sol diferente em cada dia, mas com uma magia que nenhuma foto conseguiu captar… Vi pessoas entrarem em Postos Médicos em braços, em lágrimas, sem esperança e sem vida e vi-as a sair pelo próprio pé… Vi famílias em prantos, vi trabalhos de parto complicados, vi olhares de desespero, vi sonhos desfeitos…

Mas também vi famílias felizes, completas, sorridentes… Muita fé e muita esperança… Seria ingrato enunciar um caso de sucesso, porque, felizmente, foram mais os de sucesso dos que os de insucesso…

A verdade é que as memórias ficam e os acontecimentos e acabam por nos moldar e nos acompanhar o resto da vida.

O que mais a marcou na nossa terra?

Na vida de um profissional de saúde o que mais nos marca sempre é ver um doente nosso recuperar, regressar para junto da família e continuar a sua jornada feliz… O que enche o coração aqui é o reconhecimento, os sorrisos sinceros, os abraços dos mais velhos que vêm os seus filhos regressar… Uma mãe agradecida pelo bem-estar do seu filho… e mais que isso é as pessoas sentirem-se tão agradecidas que têm necessidade de partilhar, oferecer seja um abacate ou um mamão, mas que embora lhes vá fazer falta é um símbolo de gratidão… Isso, não se vê em mais lado nenhum.

Onde está agora? Para onde vai a seguir?

Estou sempre a circular pelo país, nunca estou mais que dois, três meses parada no mesmo sítio… Por isso tenho uma visão global e bastante real de Angola.

Quando pensa regressar a Portugal?

No dia em que sentir que não faço qualquer diferença, que aquilo que eu faço não acrescenta nada a este país ou a estas pessoas, nesse dia regresso.

Sente que está realmente a fazer a diferença em Angola?

Se não sentisse não estaria aqui. Não é fácil mudar de vida, mudar de país precisamente para um país que atravessa tantas dificuldades…

A cada pessoa que consigo tratar, a cada profissional que consigo ensinar algo novo, a cada um que a mim recorre e que eu sou capaz de solucionar o seu caso, de lhe dar resposta, para esse eu faço diferença… pode ser um universo pequeno, podem ser mil em milhões… mas para esses eu posso ter feito a diferença entre a vida e a morte, entre a dor e o bem-estar… e é isso que me faz deitar todas as noites com a sensação de missão cumprida.

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