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Saúde

Doar sangue é negócio junto dos hospitais de Luanda

A crise económica e as febres hemorrágicas que assolam Luanda, vão criando um novo negócio à porta dos hospitais. Um “balão” de sangue pode custar mais de 170 dólares, mas o preço é negociável.

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Numa volta pelos principais hospitais de Luanda, a braços com falta de sangue, é fácil perceber o negócio na envolvente. Após alguns minutos de conversa, há sempre alguém na rua com contactos de ‘dadores' de sangue para fornecer.

"Depende dos preçários. Doo [sangue] a 20.000 kwanzas, 25.000 kwanzas ou 30.000 kwanzas. Se lhe vejo [ao familiar] uma capacidade boa, condições, que posso pedir um pouco mais, peço um preço mais elevado. Se a capacidade é baixa dou também uns valores mas baixos", explica à Lusa Samuel Augusto. Este canalizador e ‘dador' de sangue profissional de 30 anos chega, confessa, a doar sangue duas vezes por mês, face à regra médica que limita a três doações por ano.

A procura actual explica-se porque muitos destes familiares estão também doentes ou não reúnem condições para doar sangue, o que, aliado à rotura das reservas nos hospitais, devido às epidemias de malária e de febre-amarela, com perto de meio milhão de infectados desde Janeiro, é o gatilho para transformar a doação numa venda.

"Faço todos os exames e tenho tudo controlado. Ainda hoje apareceram [familiares a pedir] mas já não estou disponível. Bebi duas cervejinhas e não estou em condições", diz Augusto. Normalmente fica pelas redondezas do hospital Américo Boa Vida, em Luanda. Os clientes ligam-lhe e é depois levado para o interior, para a sala de doação, apresentado como amigo da família.

"A princípio estou a salvar a vida. Este dinheiro serve para pagar a renda da casa e para me alimentar, para estar bem para voltar a dar sangue, para ter sangue forte", atira.

Nos arredores do mesmo hospital, a Lusa encontra outro destes profissionais da doação de sangue. Lário Chinguale, de 24 anos, divide o tempo entre ajudante pedreiro e, quando o telefone toca, o banco do hospital, para doar sangue. Uma dádiva que, explica, tem um preço: "Vai depender da pessoa que vai-me buscar. Cobro 20.000, 15.000 [kwanzas], só para não exagerar. As pessoas pagam porque querem que os familiares fiquem melhor".

Confrontado sobre se se trata de solidariedade ou de um negócio, admite as suas próprias dificuldades, num país a braços com uma profunda crise e onde um salário mínimo não chega para comprar esta ‘doação' de sangue. "Eu também o faço pela minha necessidade. O dinheiro é para me alimentar bem", diz Lário.

Num outro hospital da capital, o Lucrécia Paim, a Lusa encontrou Génito Paulo, vendedor de saldo (cartões de carregamento do crédito do telemóvel) de 37 anos, que responde às chamadas para doar sangue.

Insiste que não faz negócio com o sangue, mas lá confessa que quando alguém precisa e o chamam é tudo uma questão de "conversar". "Não posso dar o preço, porque isso não tem preço", atira, sem adiantar mais. Ainda assim, confirma que a procura por dadores de sangue na rua, a pagar, é muita.

Só o grave surto de malária já levou 400.000 pessoas aos hospitais, situação agravada com a epidemia de febre-amarela, que provocou perto de 300 mortos desde Dezembro. "Vem muita gente à procura de sangue, porque os familiares não podem dar", reconhece.

Foi o que aconteceu com Virgílio Cambolo, de 24 anos, que para tentar salvar o sobrinho, de dois anos, internado em Luanda com malária, recorreu a um conhecido. "A médica disse que eu não podia dar sangue. Então fui procurar um amigo. O balão de sangue custou-me 10.000 kwanzas", contou à Lusa, mostrando-se sempre agradecido pela "ajuda" que recebeu do colega. Pagou metade a pronto e o resto dias depois, mas tudo foi em vão: O sobrinho acabaria por falecer a 13 de Março, no hospital.

O crescimento de casos de malária devido às fortes chuvas e a epidemia de febre-amarela têm vindo a agravar a falta de sangue nos hospitais de Luanda, onde são necessárias 200 dádivas diárias, quando no final de Março não chegavam à centena.

Os números foram revelados na altura pela directora do Instituto Nacional de Sangue de Angola, Luzia Dias, admitindo que a "rotura" era "inevitável" porque se "ultrapassou tudo o que se pensava que podia acontecer" em Luanda, que conta com mais de 6,5 milhões de habitantes. "Nunca houve tantas pessoas com malária, tantas crianças nos bancos de urgência, como tem havido agora. Há muito menos pessoas a doar sangue", reconheceu então Luzia Dias.

A própria vacina contra a febre-amarela - mais de seis milhões de pessoas vacinadas desde Janeiro na capital - também é um factor limitante, porque estes só podem dar sangue ao fim de 30 dias. Igualmente, os doentes com malária estão impossibilitados de o fazer.

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