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Sindika Dokolo, um coleccionador na ribalta

"Coleccionar arte africana contemporânea, e crescer rodeado de arte clássica, permitiu-me treinar o olhar e desenvolver o gosto e a autoconfiança para coleccionar obras-primas da arte africana clássica. Os objectos na minha colecção têm de ser peças de excelência".

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Qual a motivação subjacente ao projecto de repatriar peças clássicas de arte africana?

Acho que devemos começar por entender o contexto – como tudo isto começou. Na minha infância passada em Paris, vivi sempre rodeado de arte africana clássica. Embora não tivesse plena consciência da arte africana, os meus pais ensinaram-me a importância da identidade cultural, e a importância da arte como parte vital dessa identidade. O meu pai tinha desenvolvido o gosto pela arte africana clássica e eu cresci com essas peças em nossa casa. Ele era também amigo do coleccionador Jean Cambier. Quando tinha os meus 12 anos, visitava semanalmente a casa de Jean para ver a sua colecção. Como se fosse um museu, a casa foi construída em torno da arte. Apreciávamos vinho em conjunto e sentávamo-nos em cadeiras medievais, contemplando juntos as suas mais recentes aquisições de arte africana clássica – como se fosse uma cerimónia, uma iniciação. Essas visitas semanais lançaram em mim uma semente, fizeram-me descobrir a "poderosa arte do exorcismo".


A minha família saiu de Paris para a República Democrática do Congo em 1994, e no ano 2000 eu parti para Angola. Angola e a República Democrática do Congo têm culturas e povos comuns, e apesar de Luanda ficar apenas a 45 minutos de voo de Kinshasa, fiquei surpreendido por conhecer tão pouco acerca da realidade angolana, da nação, do seu povo, e das suas culturas. A verdade é que me impressionaram. O ambiente em Angola no final da guerra era galvanizante. Angola sabia quem era, o povo não se preocupava com as percepções – os angolanos são fortes e orgulhosos. Têm controlo sobre a sua narrativa, mantêm-se fiéis a si próprios e exigem respeito. O fim da guerra em Angola foi também um momento especial na história, um momento em que os angolanos sentiram que nada os poderia derrotar.

O outro acontecimento que me lembro de ter tido impacto em mim foi uma visita que fiz a Paris. A minha família pretendia adquirir um apartamento na cidade. Vimos um apartamento muito bonito que pertencia a um produtor musical e à mulher. O piso térreo do apartamento tinha esculturas de César em exposição, e, ao cimo das escadas, pendurada na parede, estava a pintura Pharynxs de Jean-Michel Basquiat. Fiquei em estado de choque. Era como um murro no estômago. A conversa com o proprietário rapidamente derivou do apartamento para a sua colecção de arte.

A questão de trazer de volta a arte africana clássica é muito recente, o projecto começou a sério em 2013. A primeira coisa que eu percebi, ainda sob a influência da pintura de Basquiat, é a forma como a sua poderosa arte contemporânea encontrou as suas raízes na tradição africana. E pensei como seria magnífico se os artistas africanos de hoje também pudessem inspirar-se na sua tradição, nas obras criadas pelos seus antepassados. Expor os artistas de hoje à arte africana clássica poderia ser uma fórmula interessante para desvendar o potencial de novos temas artísticos. Gostava de ser um motor, de captar o máximo possível da energia de Angola e estimular a próxima geração de artistas.

É também um coleccionador de arte africana clássica. Enquanto colecionador, porque fez a transição da arte contemporânea para a arte clássica?

O que eu admiro na prática africana da arte é o facto de não ser sobre o artista ou a impressão estética. Trata-se de um propósito mais elevado. A capacidade de dar forma ao mundo invisível, a um espírito. E isso não só a torna diferente, como também a torna superior a outras práticas artísticas.

Comecei por comprar, pessoalmente, peças clássicas de arte africana em leilões – na Christie’s e na Sotheby’s – onde no passado adquiria arte contemporânea. Nessa altura fiquei amigo dos marchands Tao Kerefoff e Didier Claes. Por intermédio deles, continuei a aumentar e a cuidar da minha colecção. Organizei a minha colecção escolhendo não só aquilo de que gostava mas também o que eu considerava ser o melhor do seu género. Esforço-me por ter as principais correntes da arte africana clássica, bem como a melhor qualidade possível de cada objecto. Cada peça que adquiro tem de preencher os requisitos históricos e de certificação de origem – ter sido apresentada em exposições, ter uma proveniência comprovada, e figurar em livros e catálogos importantes. Quero obras-primas que constem das páginas dos melhores livros de arte.

Muito tem sido escrito sobre a arte africana, mas sobretudo de um ponto de vista etnográfico ou antropológico. Muito pouco tem sido escrito sobre a própria arte ou sobre os artistas que criaram as peças. E foi este o motivo que me levou a assumir a missão de reunir o máximo de informação possível. Procurei os melhores livros e tentei aprender tudo o que podia sobre a arte africana clássica.

Coleccionar arte africana contemporânea, e crescer rodeado de arte clássica, permitiu-me treinar o olhar e desenvolver o gosto e a autoconfiança para coleccionar obras-primas da arte africana clássica. Os objectos na minha colecção têm de ser peças de excelência.

"Procuro criar a melhor colecção de arte africana clássica no mundo"

O que o motivou a repatriar obras roubadas do Museu do Dundo?

Um livro que encontrei quando procurava aprofundar os meus conhecimentos sobre a arte africana clássica da autoria da historiadora de arte Marie-Louise Bastin – La Sculpture Tshokwe. Ao folhear o livro, vi fotografias de objectos do Museu do Dundo em Angola. Houve uma fotografia que me impressionou, um armário enorme cheio de máscaras MWANA PWO. E pensei "Que fantástico! Quem diria que um museu tão pequeno possuía obras-primas que valem milhões de dólares!". Disse a Didier que tínhamos de visitar o museu e ver pessoalmente as peças.

Agendámos uma visita com o director do museu, alugámos um pequeno jacto, e deslocámo-nos ao museu recém-renovado mas longínquo. As instalações eram impecáveis, o governo tinha gasto muito dinheiro na reabilitação do museu. Transmitia uma sensação etnográfica – lanças, pinturas murais, tronos de chefes, e utensílios de cozinha de uso diário estavam em exposição para mostrar como os antepassados viviam. O museu também tinha uma pequena biblioteca onde tudo estava bem documentado. No entanto, o que não conseguimos ver foram as máscaras mwana pwo do livro. Não vimos nenhum dos tesouros da arte Chokwe. Perguntei ao director se ele tinha alguma das máscaras do livro de Marie-Louise Bastin. E ele respondeu que tinham sido roubadas durante a guerra, vendidas a particulares, e que não havia maneira de as poder localizar. Isso revoltou-me. Em primeiro lugar, como podia o governo ter investido tanto num museu sem compreender o valor e a relevância da própria arte? Estávamos a olhar para a nossa história numa perspectiva de exotismo – "era assim que os selvagens viviam". E, em segundo lugar, com um museu como o do Dundo, não há nenhuma razão para que as obras-primas que pertencem ao museu não se encontrem lá.

Didier contou-me que, quando ele era criança, na República Democrática do Congo, no final dos anos 80 do século passado, várias peças do Dundo passaram por Kinshasa. Assim, com base nessa memória antiga, formámos uma equipa – que incluía Tao Kerefoff, Agnès Lacaille (africanista e museóloga), vários investigadores e advogados – e começámos a procurar as peças que tinham sido pilhadas. Pedimos ao Museu Real da África Central em Tervuren que nos facultasse acesso aos seus arquivos respeitantes aos museus angolanos e começámos a identificar peças que no passado tinham pertencido à colecção do Museu do Dundo.

"É importante usar números e valores para despertar o interesse público e promover o debate sobre o valor da cultura"

Certifiquei-me de que estávamos a seguir uma abordagem pragmática. Eu sou um coleccionador, sei como este mercado funciona, sei que quando uma peça é suspeita, se for atrás dela, corro um risco. Compreendo que quando se colecciona arte africana clássica pode haver elevados montantes de dinheiro envolvidos, mas também sei que o mercado ficou fora de controlo há cerca de cinco anos. E sei também que muitas das peças Chokwe que procurávamos devolver ao Museu do Dundo tinham sido compradas nos anos 80 e 90 do século passado. E decidi que iria resgatar pessoalmente as peças para o museu, mas que pagaria apenas o preço que o coleccionador ou o marchand tinham pago aquando da primeira aquisição. Eu dar-lhes-ia o dinheiro que tinham gasto na compra das peças, nem mais um dólar.

A discussão sobre o repatriamento de obras de arte para o respectivo país de origem não é nova. Porque é diferente agora para a arte africana?

Vejamos o exemplo dos gregos; 99% do património da Grécia está amplamente documentado, estudado e acessível ao seu povo. Os gregos têm perfeita consciência de que a Grécia é o berço da Europa moderna. Eles sabem quem são, de onde vêm e o valor que têm – a sua arte contribui para esta percepção.

São aspectos fundamentais que faltam actualmente em muitas regiões de África. Não temos acesso ao nosso património e não compreendemos a importância deste património para a nossa auto-estima, a confiança em nós mesmos, o nosso conhecimento e a nossa visão. Sem esse conhecimento, é impossível sermos cidadãos válidos e produtivos, o centro do nosso próprio pensamento. É impossível não sermos marionetas. Estamos a perder as nossas raízes e é por isso que considero ser vital restabelecer a ligação com a arte africana clássica. Sentirmo-nos orgulhosos dos tesouros há muito esquecidos.

Na semana passada estava a ver um documentário em que o apresentador falava da história do rio Congo. Nesse documentário, o apresentador descrevia a forma como Diogo Cão, o navegador português, descobriu o rio e erigiu um enorme padrão de pedra para assinalar o descobrimento. Ao lado do padrão, afirmou: "É aqui que começa a nossa história". Achei muito interessante que ainda hoje, depois de todas as lutas que países como a República Democrática do Congo e Angola tiveram de enfrentar até aos dias de hoje, continuemos a acreditar que a nossa história começa no primeiro dia em que um branco nos avistou. Isso diz muito sobre o caminho que ainda temos de percorrer até nos tornarmos o centro de gravidade de nós mesmos. Temos ainda muito trabalho pela frente para assumirmos o controlo da nossa história. Nunca alcançaremos o nível de desenvolvimento económico a que aspiramos se não soubermos verdadeiramente quem somos.

Algumas pessoas poderão criticar os seus esforços com este argumento: "O Louvre deveria devolver a arte italiana à Itália? Essa arte foi levada à força. Onde acaba isto?"

A democracia é sensível à opinião pública, mas vacila quando a sua moral e a sua ética são postas em causa.

Não só a África começou a corrida tarde, como agora, infelizmente, não sabemos em que direcção correr. No entanto, o importante é que o debate tenha sido desencadeado. As pessoas sentem, no geral, simpatia pela causa porque ela está claramente definida. Este é um debate sobre auto-afirmação, uma luta para reivindicar respeito e dignidade. Quanto a mim, sinto que estou a fazer a minha parte pelos meus filhos e pelos meus netos. Como pai, tenho a responsabilidade de esclarecer os motivos da luta e pôr-me na linha de fogo. Já não é suficiente ser o «africano simpático», isso é contraproducente. Acredito que, para sermos africanos plenamente realizados, precisamos antes de tudo de ter um sentimento de auto-estima e compreender aquilo que representamos. Temos de compreender que pertencemos a uma cadeia, que fazemos parte de uma trajectória que começou muito antes de nós e vai continuar para além de nós. O nosso valor não começa quando alguém põe os olhos em nós. Isto tem de ser encarado seriamente e eu decidi fazê-lo através da arte e da cultura.

A pilhagem de arte africana clássica é um problema que persiste. Não receia que as obras repatriadas possam ser de novo roubadas do Museu do Dundo?
Isso não acontecerá no Dundo. O trabalho que fizemos foi aumentar a autoconsciência dos Angolanos. As obras pilhadas foram devolvidas a Angola no dia em que, oficialmente, começou a luta pela independência do País. As peças foram apresentadas ao rei dos Chokwe e ao Presidente da República. Estavam também presentes membros destacados do governo e do parlamento. Tratou-se de uma posição política importante que assinalava o regresso da nossa história e da nossa identidade. O regresso de uma parte de nós mesmos. Ao torná-lo oficial, e não apenas um pormenor, desperta nas pessoas uma espécie de consciência e de autoconhecimento. Todos se mobilizam em torno de uma área que funciona como uma espécie de cessar-fogo na nação.

Estou firmemente convicto de que, pelo facto de as peças terem sido devolvidas neste contexto político e cultural, não teremos problemas de pilhagem no futuro.

Quais foram alguns dos seus sucessos alcançados com o projecto?

Encontrámos alguns objectos em colecções privadas e outros encontrámo-los na posse de marchands. Toda a gente está interessada em guardar algo para ver o seu valor aumentar, sobretudo os marchands. Por exemplo, há uma estátua importante de uma princesa Chokwe, actualmente regressada ao Dundo, que estava na posse de um marchand. Ele não a queria vender por menos de um milhão de dólares. Paguei-lhe 70 mil dólares. Mesmo assim é muito dinheiro, mas tínhamos de a reaver para o museu por um preço justo.

Outro coleccionador contactou-nos, de facto espontaneamente, para nos devolver uma cadeira Chokwe que ele acreditava ter sido roubada. Não pediu dinheiro por ela, queria apenas ser apresentado ao rei dos Chokwe e visitar o museu. Vou empenhar-me pessoalmente para que isso aconteça antes do final do ano com grande destaque. É importante recompensar quem nos trata como pessoas e não como "pretos".

Até ao momento, já identificámos e localizámos cerca de 40 peças todas elas pilhadas do Museu do Dundo. Estamos a tentar manter-nos focados. Não se trata de uma questão genérica sobre todos os tesouros africanos, isso é demasiado vasto. Nesta causa temos a lei do nosso lado – é ilegal possuir peças inventariadas de um museu. Das 40 peças identificadas, recuperámos cinco, algumas das quais são objectos de arte verdadeiramente valiosos. Já encontrámos várias máscaras mwana pwo das 30 que figuram na fotografia. Essa imagem é uma chamada de atenção permanente do que ainda é necessário fazer.

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