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Paulo Varela: “Portugal é, quase com toda a certeza, o único dos parceiros externos de Angola que nunca abandonou o país”

Ainda a década de 80 não tinha terminado, já a Câmara de Comércio e Indústria Portugal Angola (CCIPA) dava os primeiros passos na cooperação empresarial entre os dois países. Muito mais que conhecimento, apoio jurídico ou acompanhamento económico, é na realidade um parceiro ao serviço das empresas. Uma presença constante para investidores, desde a decisão de arriscar, aos desafios enfrentados no terreno e à ultrapassagem de obstáculos.

Paulo Varela conduz a associação desde o início de 2015. Mais de três centenas de empresas portuguesas e angolanas contam com a CCIPA para reforçar o seu potencial de negócios. Crise, medidas, Governo, investimento, cooperação bilateral, incentivos, instabilidade e futuro em análise por quem não tem dúvidas: “Acredito em Angola, hoje como sempre”.

Crise, a palavra do ano

O termo crise está presente em cada esquina de Angola. De que forma é que a promoção do investimento foi afectada por esta situação?

A crise vivida em Angola desde meados de 2014 tem origem e contornos próprios, apesar de semelhante às vividas por países cuja economia assenta na produção e exportação, exclusiva ou quase exclusiva, de um produto, geralmente uma matéria-prima, como é, neste caso, o petróleo.

A quebra para cerca de 1/3 do preço do crude nos últimos dois anos provocou uma descida acentuada nas receitas de exportação e fiscais de Angola, com a inevitável repercussão sobre as relações económicas com os parceiros internos e externos, que viram, desde 2014 e até agora, com preocupação, as crescentes dificuldades na expatriação de divisas, nomeadamente para pagamentos aos fornecedores, nos mais diversos sectores de actividade.

A desvalorização do kwanza face ao dólar norte-americano em cerca de 40 por cento em 2015, a enorme disparidade do câmbio nos mercados oficial e paralelo e as dificuldades registadas nos processos de importação, num país que compra ao exterior cerca de 90 por cento daquilo que consome, são alguns dos factores na origem do aumento generalizado dos preços (a inflação registou uma taxa de 21,74 por cento entre Janeiro e Junho e uma taxa anualizada de 31,8 por cento) o que, por seu turno, contribuiu para a especulação crescente que desequilibra qualquer projecção sobre o futuro da economia angolana, a curto e a médio prazos.

Embora para quem está em Angola e para quem assenta a sua relação com o mercado na exportação de bens e serviços, a situação esteja difícil (ainda mais porque não se lhe perspectiva o final), parece-nos que para o investidor externo que possua capacidade financeira e tecnológica, este pode ser um bom momento para a sua entrada no mercado angolano, numa perspectiva de longo prazo.

As medidas que o Governo tem vindo a tomar para contornar estas dificuldades parecem-lhe as mais acertadas?

É reconhecido, internacionalmente e desde os primeiros momentos em que a crise se tornou uma evidência, que o Executivo angolano tem feito praticamente tudo ao seu alcance para atenuar os efeitos negativos decorrentes da quebra das receitas: posta em causa a prossecução do Plano de Desenvolvimento Nacional 2013 – 2017, foi preciso priorizar sectores e projectos, reduzir a despesa pública (retirada de privilégios, rigor na contagem do número de efectivos na administração pública, encerramento de empresas economicamente inviáveis, entre outras medidas), assegurar o nível das reservas internacionais líquidas (para garantir a importação, nomeadamente, de bens alimentares e medicamentos e produtos de saúde), celebrar acordos de financiamento com investidores estrangeiros, públicos e privados, e com as organizações multilaterais de financiamento, aumentar a produção petrolífera (para compensar a quebra no preço do barril) e fomentar a diversificação da actividade económica, estimulando a produção e a produtividade dos sectores não petrolíferos.

Mas Angola vive numa economia global e globalizada e, por muito acertadas que sejam as medidas adoptadas pelo Governo, por muito apoio que o país obtenha da comunidade internacional, por muito que os seus parceiros definam Angola como uma prioridade para as empresas dos seus países, aquilo que efectivamente funciona como alavanca para a diversificação económica e conduz ao crescimento e ao desenvolvimento, é a participação das empresas, nacionais e/ou estrangeiras, preferencialmente através da formação e consolidação de parcerias mistas. E este é, mais do que todos os outros, o factor a estimular, a fomentar e a acarinhar pelas entidades receptoras do seu investimento.

Por outro lado, para além do ambiente político e económico mundial não estar a viver os seus melhores momentos, o que provoca a retracção dos investidores no que concerne à internacionalização das suas actividades, existem diversos outros mercados, emergentes como Angola, com taxas de crescimento idênticas e até superiores, com economias estáveis e diversificadas, menos burocratizadas no que se refere aos procedimentos inerentes à constituição e funcionamento das empresas (o estudo do Banco Mundial Doing Business 2016 coloca o ambiente de negócios em Angola no 181.º lugar entre 189 países, tendo melhorado duas posições face a 2015), que constituem alternativas viáveis ao mercado angolano.

Em conclusão, é nossa opinião que a crise vivida presentemente em Angola conta, para além do factor-petróleo, com vários outros factores na sua origem, independentes dos esforços e não susceptíveis de serem minimizados ou eliminados pelas medidas tomadas pelo Governo, por mais adequadas que elas sejam.

"Tão breve Angola comece a liquidar as facturas em atraso aos empresários portugueses, as exportações retomarão"

 

É importante que se mantenha uma presença portuguesa na economia e na cooperação em Angola? Como caracteriza actual relação bilateral entre os dois países?

Portugal é, quase com toda a certeza, o único dos parceiros externos de Angola que nunca abandonou o país, independentemente das dificuldades e da gravidade das diversas crises vividas. Os empresários portugueses sempre estiveram presentes na economia angolana - construíram, formaram, acompanharam -, nos diversos sectores de actividade e em cada uma das 18 províncias.

É evidente que, independentemente da vontade e do desejo de participar na recuperação e desenvolvimento económico-social do país, com o qual existem laços de verdadeiro afecto e identidade, o que moveu os empresários portugueses foi a possibilidade de obterem, em Angola, um retorno maior para os seus capitais investidos.

A relação actual entre Portugal e Angola atravessa um bom momento, na medida do que a conjuntura internacional contempla, a nível político, institucional e económico. Aliás, neste domínio é relevante destacar a “reanimação” da Convenção existente entre a COSEC e o BNA, assinada em 2004, relativa à Cobertura de Riscos de Crédito à Exportação de bens de equipamento e serviços de médio e longo prazos (máquinas e equipamentos, construção e reparações naval e aeronáutica, empreitadas de construção civil e obras públicas, empreendimentos na modalidade “chave na mão”, estudos, consultoria de projectos e assistência técnica) de origem portuguesa para Angola: as operações são previamente priorizadas pelo Governo angolano e beneficiam da cobertura da COSEC, sob a forma de seguro dos créditos dos exportadores sobre os importadores angolanos (crédito fornecedor) ou garantia dos financiamentos concedidos por instituições de crédito ao BNA, a outras instituições de crédito angolanas ou a importadores angolanos (crédito comprador). Por seu turno, os créditos cobertos são avalizados pelo Estado Angolano que se compromete a garantir o bom pagamento e a transferência dos montantes relativos às exportações efectuadas ao abrigo da Convenção. O montante máximo actual é de 1000 milhões de eurose funciona numa base revolutiva, sendo o euro a moeda dos contratos de exportação e de financiamento.

Continua a sentir a vontade em investir, em arriscar, em apostar em Angola, por parte dos empresários portugueses? Quais os principais entraves ao investimento luso actualmente?

A crise vivida em Angola ocorre num momento em que a economia portuguesa ainda se encontra frágil, após a intervenção da troika e no rescaldo de uma crise generalizada que afectou as empresas e os consumidores, ou seja, quem produz e quem compra. Por isso se assistiu, nos últimos anos, a uma retracção no investimento directo português em Angola: não por falta de interesse no mercado angolano mas devido à descapitalização das empresas portuguesas.

Não obstante a quebra registada no investimento português, havia condições, de ambos os lados, para fomentar as trocas comerciais, que cresceram, nomeadamente entre 2012 e 2014, tanto ao nível das exportações portuguesas para Angola como das exportações angolanas para Portugal; alturas houve em que o saldo da balança comercial bilateral foi positivo para Angola, o que até então nunca tinha sucedido. Porém, o agudizar da crise em Angola em 2015 e os atrasos na liquidação das facturas aos fornecedores levaram a que o comércio bilateral sofresse uma quebra acentuada: nos primeiros cinco meses de 2016, e comparando com o período homólogo de 2015, as exportações de Portugal para Angola caíram 45,94 por cento e as exportações de Angola para Portugal caíram 47,1 por cento.

Mas, também aqui, a questão não assenta na falta de interesse: tão breve Angola comece a liquidar as facturas em atraso aos empresários portugueses e estes deixem de lidar com problemas de tesouraria derivados dessa situação, as exportações retomarão o seu ritmo de sempre pois o interesse dos empresários portugueses pelo mercado angolano continua vivo, sendo o recíproco igualmente verdade.

Que tipo de incentivos é que poderão ajudar a contornar esta situação?

O Governo português criou, em Abril de 2015, uma linha que visava apoiar as PME portuguesas com dificuldades de tesouraria derivadas dos atrasos nos pagamentos provenientes de Angola. Por motivos relacionados com a dificuldade de articulação entre a banca portuguesa e a banca angolana, a validade dos documentos exigidos pela banca portuguesa e os spreads e as taxas de juro que impendiam sobre o crédito atribuído às empresas, a operacionalização da linha ficou bastante aquém do esperado (apenas cerca de 1/5 do montante inicialmente atribuído foi despendido) e fala-se, agora, em descontinuá-la.

Procurando atenuar as consequências dos atrasos no repatriamento dos salários, houve bancos que criaram mecanismos que permitiam adiantar até 70 por cednto do valor em dívida, mas as referências à validade e recurso a estes mecanismos impedem-nos de retirar conclusões sobre a sua mais-valia.

Seja qual for o tipo de incentivo que os Governos de ambos os países coloquem em cima da mesa para análise, desde uma linha de crédito a uma maior liberalidade na concessão dos seguros de crédito à exportação, o seu sucesso dependerá sempre do nível de compromisso que Portugal e Angola atribuam ao seu cumprimento.

Angola é conhecida internacionalmente por respeitar os seus compromissos financeiros. A eventual disponibilidade do BNA para assumir, com o Banco de Portugal, um mecanismo que se substitua, ainda que temporariamente, às empresas angolanas no pagamento das suas dívidas às empresas portuguesas, será, a nosso ver, a condição de base para que qualquer tipo de incentivo possa vingar.

"Angola e os angolanos são, acima de tudo, resilientes, e já mostraram, por diversas vezes, que conseguem sobreviver, viver e evoluir"

"A nosso ver justifica-se inteiramente a diversificação da economia, principalmente através da aposta nos sectores produtivos" Paulo Varela

Na sua opinião, quais os sectores mais indicados para o investimento no momento? Justifica-se a diversificação da economia tão apregoada pelo Governo?

A decisão de diversificar a economia angolana, tornando-a menos dependente do petróleo, só peca por tardia: nenhuma economia cresce e se desenvolve, de forma sustentada, tendo por base a monoprodução e a monoexportação. E esta não é a primeira crise que Angola vive derivada das oscilações do preço do crude nos mercados internacionais; é, isso sim, a mais prolongada e, daí, as consequências mais nefastas e vincadas.

Por isso, sim, a nosso ver justifica-se inteiramente a diversificação da economia, principalmente através da aposta nos sectores produtivos: agricultura e agro-alimentar, pecuária, pescas e aquicultura, exploração e transformação madeireira, rochas ornamentais, indústria ligeira em geral, produção e distribuição de energia eléctrica, saneamento e água potável, comunicações e vias rodoviárias, ferroviárias e portuárias… no fundo, trata-se de investir em áreas que até agora funcionaram essencialmente com base na importação de bens e serviços, através da qual se escoa a maior parte das divisas que o país obtém e que o mantêm dependente face ao exterior, o que é tanto mais grave pois neste grupo incluem-se os bens de primeira necessidade.

A experiência portuguesa com aquilo a que chamamos “crise” poderá ser uma mais-valia para os empresários que decidam apostar no mercado angolano?

A crise portuguesa e a crise angolana não têm a mesma origem nem os mesmos contornos. Se em Portugal foi o elevado endividamento público e privado que esteve na sua origem, em Angola foi a descida acentuada e prolongada do preço do petróleo.

A experiência que os empresários portugueses adquiriram com a crise em Portugal – aplicação de medidas de austeridade, correcto funcionamento e aplicação do sistema fiscal, redução da despesa pública, atribuição de incentivos aos sectores produtivos de forma a reduzir as importações e aumentar o consumo interno, entre outras – não devem ser vistas como uma mais-valia para apostar no mercado angolano nem em qualquer outro mas antes como formas de assegurar a utilização racional dos recursos disponíveis e parcimoniosa dos recursos raros, aumentar a produtividade das empresas e investir em tecnologias produtivas, limpas, que permitam o aumento da capacidade de produção, tendo em vista o consumo no mercado interno e a exportação.

Em suma, não diria que a experiência dos empresários portugueses na gestão em “ambiente de crise” seja uma mais-valia mas estou convencido que a resiliência, criatividade e inovação que desenvolveram tem sido muito útil também em Angola, nestes últimos dois anos.

Do outro lado da moeda… A ideia generalizada é que poucos empresários angolanos apostam em Portugal. É correcta? Quais as oportunidades que Portugal oferece aos investidores provenientes de Angola?

Não podemos comparar a “quantidade” de investimentos portugueses em Angola com a “quantidade” de investimentos angolanos em Portugal: os primeiros existem desde sempre, os segundos tiveram início há cerca de 15 anos, com maior ênfase no período pós-guerra civil, a partir de 2002.

A internacionalização das empresas angolanas é recente: tiveram que nascer (não podemos esquecer que Angola foi durante muitos anos uma economia estatizada), crescer, consolidar a sua actividade internamente e, só depois de “emergirem”, se encontraram em condições de se virarem para o exterior. Quando se viraram, escolheram Portugal como primeiro destino: língua comum, cultura semelhante, fortes laços familiares, porta de acesso aos mercados da União Europeia. Tal como para Portugal, Angola pode ser uma via de acesso aos mercados dos países que constituem a SADC.

De qualquer forma, quando os empresários angolanos com capacidade de internacionalização fizeram as suas escolhas, optaram pelos sectores com índices de crescimento mais elevados, utilizadores das tecnologias mais recentes, estratégicos para o desenvolvimento da economia portuguesa: banca, energia, telecomunicações, comunicação social, restauração e alimentar, principalmente. Serão poucos ainda? Talvez, mas com o tempo e o crescimento da economia angolana, mais empresários virão, apostarão noutros sectores, à semelhança das escolhas que os empresários portugueses fizeram em Angola.

Portugal não possui legislação específica para o investimento estrangeiro, salvo se o investidor beneficiar de algum incentivo do Estado português. Assim, as condições e oportunidades de investimento em Portugal são idênticas para investidores nacionais e estrangeiros, com idêntica aplicação do sistema fiscal e acesso aos mesmos recursos.

Associados da Câmara de Comércio e Indústria Portugal Angola
"Que Angola mostre ao mundo, mais uma vez, que é capaz de se erguer do pior"

Vê este período de instabilidade económica como uma crise transitória?

Dizia atrás que as crises são próprias das economias e que são cíclicas. E não há indicação de nenhuma crise que não tenha sido ultrapassada.

Ora, Angola e os angolanos são, acima de tudo, resilientes, e já mostraram, por diversas vezes, que conseguem sobreviver, viver e evoluir. Desta vez tudo está um pouco mais difícil, dado o longo tempo de duração da crise, mas acreditamos que com a continuação da aplicação das medidas e estratégias que o Governo angolano tem adoptado, com o apoio da comunidade e dos investidores internacionais, quando a diversificação da economia começar a dar os seus primeiros frutos (o que já está a suceder na agricultura), Angola sairá da crise e entrará num novo período de crescimento.

É preciso ter em consideração que o país não será o mesmo: os hábitos terão que ser diferentes, o enquadramento legal e tradicional das actividades económicas e empresariais terá que ser mais preciso e exigente, mas será, seguramente, um país economicamente mais estável e com uma economia sustentada.

Como presidente da Câmara de Comércio e Indústria acredita em Angola? Como vê o futuro?

Acredito em Angola, hoje como sempre. E acredito, mais ainda, que esta crise tornará a economia angolana mais forte e resistente aos embates dos mercados internacionais das matérias-primas, em geral, e do petróleo, em particular.

Não gostaria de fazer previsões nem projecções, mas gostaria de expressar um voto: que Angola mostre ao mundo, mais uma vez, que é capaz de se erguer do pior dos escombros, que a sua economia recupere e cresça e que os empresários portugueses, em conjunto com os seus parceiros angolanos, continuem na caminhada para o desenvolvimento desta que tem todas as condições para ser a economia mais desenvolvida da África subsaariana.