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Cristiano Mangovo: “Eu sendo artista gosto de ser o espelho da sociedade do mundo inteiro”

Nasceu em Cabinda e cresceu no Congo. Rodeado por uma família de artistas, apaixonou-se cedo pelas artes, apesar da escultura ter surgido depois da pintura. Conhecido pelas suas personagens “Homens Mota”, Cristiano Mangovo, usando os guiadores, tenta mostrar às pessoas que é preciso seguir em frente, “seguindo uma certa luz, a nossa inteligência, sabedoria, emoção, capacidade e flexibilidade”, apesar de todas as dificuldades. O artista, que afirma sentir-se satisfeito e completo, por dominar tanto a pintura como a escultura, inspira-se no que vê, no que sonha, e no que vive. Aos 33 anos, Cristiano reconhece ainda que gostaria de ver a sua criação dos guiadores premiada, a nível nacional e internacional.

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Cristiano, fale-me um pouco de si... Onde nasceu e cresceu, que idade tem, o que estudou?

Nasci em 1982 em Cabinda, cresci em Kinshasa [República Democrática do Congo]. Neste momento tenho 33 anos, e completo 34 em Novembro. Formei-me em Pintura, na Academia de Belas Artes de Kinshasa. Além dos estudos académicos, fiz vários workshops e formações, sobre arte contemporânea e cenografia urbana, com os professores da Escola Superior de Artes Decorativas de Estrasburgo [ESAD], em França. 

Como e quando surgiu o gosto pela arte? Foi influenciado por alguém?

A paixão pelas artes surgiu em mim muito cedo. Eu desenhava nas paredes da nossa casa, no chão, até me ausentava da escola às vezes, para ir desenhar os cartazes do cinema. Nasci numa família onde todos nós temos o dom do desenho, e eu desenhava e pintava muito bem, e constantemente, de forma a que isso levou a minha mãe, a inscrever-me no instituto de belas artes. 

O que o inspira a criar? Tem algum artista que o influencie no seu trabalho?

Tudo o que eu sonho, o que vejo, e o que eu experiencio, sempre tenho vontade de incorporar e expressar nas minhas obras, sem ter medo, para o imortalizar. Na busca de ter um trabalho que me identifique, pensei criar as minhas próprias personagens, pois enquanto artista, acho que ter as suas próprias criaturas, e criar o seu mundo, é um facto primordial. Para mim, o artista é um pequeno Deus, capaz de inventar um universo místico e estético sem duvidar de si. E por isso, mergulhei em pesquisas e experiências desde há muito tempo, facto que me levou a pintar nos guarda-chuvas, nas mesas plásticas, etc.

O meu trabalho e o meu percurso foram influenciados por vários artistas. Fui influenciado pelo artista Vitshoi Mwilambue, de Kinshasa, fui influenciado pelo Mestre António Tomás Etona, com quem tive o prazer de trabalhar, no seu atelier, de 2010 a 2012, aquando da minha chegada em Luanda, pelo asiático Yue Minjun, Francis Bacon, e Salvador Dalí, alguns dos nomes da história das artes. 

Quais são as técnicas e os diferentes materiais que mais gosta de utilizar nos seus projectos?

Uso qualquer técnica e material, dependendo da inspiração entre a pintura e a escultura. Quando realizo pinturas, penso usar técnicas que não possam prejudicar a obra no futuro, e antecipadamente, penso também nos momentos de restauração. Gosto de trabalhar com a tinta acrílica, e às vezes pinto também com óleo. Mas a maioria dos quadros são em acrílico, e faço também colagem, principalmente colagem de luvas, fotos e outras ferramentas. Em escultura, utilizo material reciclado, como barras de ferro, latas de gasosa, plástico, alumínio, etc.

Gosta mais da escultura ou da pintura? Ou para si uma completa a outra?

Na verdade, eu fiz formações em pintura e cenografia urbana. A paixão pela escultura surgiu com o tempo. De facto, tinha muitas inspirações para esculturas, até que sentia a minha alma artística cheia, e comecei a armazená-las no meu caderno de desenho. Acontece que a primeira vez que fui convidado para participar no “Jango 2013” - Residência de Jovens Artistas Angolanos - por Adriano Maia, decidi pôr em prática essa paixão, ao mesmo tempo aprendendo a soldar, com um colega escultor, Paulo Ngusi, que foi o meu mestre. Intercâmbio e aprendizagem eram os objectivos da residência. Hoje sinto-me satisfeito e completamente artista, por ter o domínio dessas duas disciplinas de que tanto gosto.

Ainda este ano, foi o único artista angolano escolhido para um festival de arte urbana na África do Sul. O que sentiu quando soube que foi escolhido?

Senti-me lisonjeado e orgulhoso, ao ver que as minhas ideias e o meu trabalho, não atraíam apenas o meu povo, e eram importantes para outras partes do mundo.

Já expôs em vários países, tanto individual como colectivamente. Até hoje, qual a exposição que mais o marcou e porquê?

A exposição que mais me marcou foi a Expo Milão 2015, com a curadoria da Susana Sousa e da Paula Nascimento, a quem eu agradeço. Foi a primeira vez que expus as minhas personagens, “Homens mota”, também chamados de “guiadores’’, fora de Angola. Estava muito ansioso por saber qual seria a reacção do público, perante o meu trabalho, e fiquei muito sensibilizado pelas reações positivas, boas críticas, e felicitações de pessoas de vários pontos do planeta. 

Tem preferência em expor em Angola, ou fora do país?

Expor fora ou cá, o importante é mostrar a minha criatividade e passar a mensagem. Por acaso, já expus muito em Angola, e hoje prefiro mais expor fora do país, para conquistar novos públicos, e para mostrar a nossa riqueza cultural, e a minha criatividade, como artista contemporâneo angolano, da nova geração.

Acha que os angolanos são grandes apreciadores da sua arte? Ou sente que o seu trabalho desperta mais interesse nos estrangeiros?

Sim, os angolanos são apreciadores do meu trabalho. Às vezes, nas ruas, encontro-me com muita gente que me reconhece e me vem falar, fazer comentários e perguntas sobre o meu trabalho. Outras pessoas dizem que eu tenho feitiço, porque segundo eles, não é algo normal uma pessoa pensar desenhar alguém com um guiador de mota na cabeça. (risos) Mas tenho mais estrangeiros a adquirir os meus trabalhos, do que angolanos.  

Que reacções a sua obra pode despertar nas pessoas?

Essencialmente, quero despertar a atenção das pessoas, quero atrair o olhar das pessoas, pela beleza e a estética, e ao mesmo tempo passar uma mensagem, que pode ser de paz, de consciencialização, de educação, elogio, crítica, amor, etc.

É recorrente nos seus trabalhos o uso de um guiador com um farol de uma moto. Que mensagem pretende transmitir aqui?

Pessoalmente, quero incentivar as pessoas de que temos de avançar, seguindo uma certa luz, usando a nossa inteligência, sabedoria, emoção, capacidade e flexibilidade. Tomar decisões certas, saber escolher boas direcções, para construirmos um futuro positivo. E quero lembrar que os líderes são guiadores e devem ser exemplares, porque são eles que são a cabeça, eles têm tarefas de mostrar o caminho a seguir. As esculturas que às vezes eu faço, tendo um lado feito de plástico moldado, e outro lado feito de ferro, cuja cabeça é um guiador de mota, com o farol iluminado, visam transmitir que a sociedade está composta de pessoas fortes e frágeis, que juntas, têm de viver em harmonia e paz, caminhando na mesma direcção, seguindo a luz, e usando a sabedoria.

Em todos os seus projectos, qual é a obra que destaca como a sua favorita?

A essa pergunta não consigo responder. É um bocadinho como perguntar a um pai qual dos seus filhos ele gosta mais. (risos) Eu gosto de todas as obras que fiz até agora, pois cada uma é única. Tenho um carinho especial, pela escultura “Incarnação”, escultura de colheres, que me valeu a menção honrosa no Prémio Ensa Arte em 2014, que foi a primeira personagem que criei com cabeça de guiador de mota. Considero que essa foi a “Mãe Guiadora”, a partir da qual nasceram muitas outras. Lembro-me que nos dias em que trabalhava nessa obra, o meu coração batia muito forte, porque era um grande desafio.

Também já foi premiado pelo seu trabalho. Qual foi o prémio que mais orgulho lhe deu em receber? E qual o que ainda gostaria de ganhar?

O prémio do Concurso sobre a Violência Sexual Contra as Mulheres, organizado pelo Fundo das Nações Unidas, para a População em Kinshasa, foi uma das consagrações que mais me marcou, porque tinha retratado, realmente, o sofrimento que passava a mulher africana. Infelizmente, os membros do corpo jurado não me tinham atribuído o prémio, mas apenas seleccionaram o meu quadro para exposição. No entanto, no final da entrega de prémios, representante da ONU [Organização das Nações Unidas], decidiu entregar-me o Prémio Especial do Concurso. O facto de ver o meu trabalho a ser recuperado, e constar da lista dos premiados, incentivou-me bastante a continuar a retratar as questões mais prementes, da sociedade onde vivo. Gostaria de ganhar qualquer prémio que surja, a nível nacional ou internacional, com a minha criação dos guiadores.

Por fim, como vê a arte nos dias de hoje? Acha que está a empobrecer, ou cumpre com o seu papel de reflectir a sociedade?

Acho que a arte tem tido uma evolução positiva, no sentido em que, deixa de ser uma coisa das elites ou dos intelectuais, para passar a ser acessível a mais gente. A arte de rua, os programas de televisão, a internet, as actividades culturais, que se organizam um pouco por toda a parte, as actividades extra-curriculares, de educação artística, têm sido factores muito importantes nessa democratização do acesso às artes. Vejo com satisfação, cada vez mais crianças e jovens nas exposições, e vejo que pessoas de qualquer nível de instrução, se sentem encorajadas a interessar-se por arte, e a ingressar na carreira artística.

Por outro lado, a arte tem vindo a diversificar-se, e a abarcar cada vez mais elementos da sociedade e da natureza. Já não se fazem apenas retratos, pinturas ou esculturas. Com o uso de diferentes técnicas, uma pedra, um tronco, um objecto pode ganhar uma segunda vida, e tornar-se numa obra de arte, pela intervenção criativa do artista. Isso é muito bom e aproxima a arte da realidade. Hoje em dia, convivemos com a arte no nosso dia-a-dia, e ela faz parte da nossa vida, e da forma de nos expressarmos, ainda que algumas pessoas possam não ter consciência disso.

Acho que a situação que atravessa a sociedade e o mundo, os artistas têm de a retratar para ficar na História. No entanto, têm de o fazer com inteligência, para não provocarem reacções negativas de ninguém. Por exemplo, ao pintar o quadro “Filho da Zungueira”, tomei como ponto de partida a criança, para falar indirectamente da situação precária, que atravessa a mulher vendedora ambulante angolana. No quadro “Trump 2016”, mostro o perigo vindouro duma mão vermelha cheia de ódio, a querer guiar a América. Fiz também a instalação performance “Air P’’ na Cidade do Cabo, para apelar à protecção e convivência harmoniosa entre povos no chamado “país arco-íris”. Eu, sendo artista, gosto de ser o espelho da sociedade do mundo inteiro.

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