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Opinião Estamos em Angola!

O menino que queria conhecer Luanda

Cláudia Rodrigues Coutinho

Casada e com 2 filhos. Deixou a vida que tinha, em Portugal, e experimenta, desde Setembro 2015, a dimensão de uma família lusa, a viver, em Angola.

No outro dia, fui jantar ao Nandinhos (restaurante onde se come um bom frango de churrasco, aqui em Luanda). Encontrei-o à porta. Os nossos olhos cruzaram-se e retribui-lhe um sorriso. A expressão era brilhante e enigmática. Estava sentado no chão com as costas encostadas a um poste, de pernas cruzadas. As roupas eram encardidas e gastas. Perguntei-lhe o nome. Respondeu-me sereno e algo distante. Nunca saiu da posição que o fazia parecer descontraído e desprendido.

:

-Que idade tens, P.? - Perguntei.

-Tenho 12…

-És de onde?

-Sou da província.

-O que estás aqui fazer?

-Saí de casa.

-Porquê? Perguntei já a abusar das perguntas…

-Queria conhecer Luanda.

-Vives onde?

-Vivo com uns amigos.

-E não regressas para casa, para a tua mãe?

-Um dia regresso…

No meio desta conversa reparei que o menino foi desviando o olhar para o meu filho D… lançava-lhe um sorriso cúmplice e provocador. Identificaram-se duas crianças com gostos em comum. O D. replicou. Eram olhares que se entrelaçavam através de duas caras curiosas, traquinas e marotas. Estava a assistir a sorrisos genuínos e a um entendimento sem barreiras, universal.

Parei com aquelas perguntas e deixei-os estar à vontade. Estavam a gozar aquele breve instante que permitia, ao menino, ser apenas uma criança.

O D. pediu para lhe levarmos água e as batatas fritas que ele adora. É o que ele mais gosta e por isso queria partilhá-las com o amigo.

Assim o fizemos, mas quando saímos já não o encontrámos lá.

As roupas, a expressão e o lugar onde o encontrei, não consentiam um menino traquina e curioso, uma criança só.

Lembro-me muito dele. Onde estará agora? Pergunto-me como o poderia ajudar.

Encontrei uma criança que aguardava pelo que não aparecia. Esperava a resposta que não encontrou em casa e a resposta que eu não lhe consegui dar. Que resposta encontrará na rua?

Em Angola é assim. Tudo acontece e se experimenta à sua grande dimensão.

Sentimos e vivemos as diversidades de um país imenso, desmedido e com uma beleza natural única!  

Um país que nos fascina e intimida através das mil e uma emoções que se conseguem experimentar, num só dia, a cada minuto e segundo.

Tudo aqui é assim, pois como alguém me disse, estamos em África, estamos em Angola!

Quando se chega, aqui, devemos saber guardar na gaveta as realidades que trazemos nas malas do avião para assim conseguir assimilar, livremente, um novo modo de estar.

Existem, no mundo, modos de estar bem diferentes dos nossos e quando se sai do país de origem temos o primeiro desafio de entender, respeitar e encontrar o novo lugar. É um desafio que nos dá humildade e coloca no crivo as nossas grandes escolhas e pessoas da vida.

Quem experimenta, sabe do que estou a falar.

Em Angola, tudo acontece à medida da sua extensão enquanto território (é mais ou menos 14 vezes o tamanho de Portugal), da multiplicidade dos seus costumes (são profundos), cultura e arte (respira-se arte por todo o lado), da complexidade da sua história, da diversidade das suas gentes, sabores, terra e beleza.

Aqui é assim.

Não estamos em Portugal, nem na Europa – é uma pura afirmação que é importante ter em conta – e não é uma comparação. O mundo não é todo igual, cada um tem a sua cultura e história que torna cada povo incomparável e próprio. É importante não esquecer isto.

Do pouco que já conheço e vivi (ainda sou uma aprendiz desta terra e tenho tudo para ver e descobrir), encontrei, para já, uma terra que nos faz rir e chorar, confranger e amar.

Encontrei uma Angola misteriosa, grandiosa, complexa, sedutora e apaixonante.

Tenho a sensação que o tamanho dos olhos de quem aqui vive (ou viveu), aumenta.

Aprendemos a conviver e a olhar para tudo de frente, um tudo que é grande e que nos toca e transforma cá dentro, para sempre.

Este texto (e também os outros) resume-se a um pequeno testemunho que provém da minha simples sensibilidade e realidade.

Estou a dar-vos o meu olhar e a minha voz e reparto, com quem cá está ou já esteve ou não conhece, o que é viver nesta terra que se entende com o coração e nos pinta a alma de um ocre vermelho dominante.

Não avalio nada, não é isso que me compete, falo apenas sobre temas que vou desvendando e que gosto de partilhar através da experiencia de estar longe de Portugal e dos meus e viver perto de um povo e continente, que tem um pouco da nossa história.

Também me ajuda muito, pois tenho o prazer de escrever e de passar a limpo os meus sentimentos.

Agradeço por isso a todos os que me leem. É para isso que o faço.

Os meninos de rua têm sido uma verdadeira surpresa e descoberta. Conheci a sua força de viver e de inventar que me deixou impotente, fascinou e surpreendeu. São empreendedores como nunca, falam a língua da rua, a da sobrevivência. É um saber rico, o deles. Podia e devia ser bem aproveitado.

Sinto-me impotente, tento perceber o seu motivo, as crianças são puras na sua essência e devemos saber entender as suas emoções como nunca, não as podemos colocar na balança dos adultos. As emoções e sonhos das crianças têm a medida da infância e para as entender bem temos de descer à sua altura e tentar lembrar como era quando eramos crianças. É o que tento fazer quando converso com eles e é o que temos de fazer com tudo o que vamos tendo aqui e aliás na vida…

No outro dia encontrámos o J., numa rua de Luanda, a engraxar sapatos e a arrumar carros.

O J. costumava esperar por nós, todos os Sábados de manhã, na praia do Caribe, na ilha de Luanda. Tem 11 anos e fugiu de casa (duma província), porque a mãe lhe quis bater com uma faca. Mostrou-nos algumas marcas da violência. A mãe tem mais filhos e já não está com o pai; a madrasta não lhe dava comida. Estava sozinho e por isso resolveu fugir de casa e vir para Luanda. Vive na ilha, na rua, com os amigos.

Como ficava feliz enquanto brincava com eles e conversava connosco. E o meu filho, o que adorava brincar com ele – sabia jogar à bola melhor que o D. e ensinou-lhe algumas coisas.

Houve um Sábado que não apareceu e foi há pouco tempo que o voltámos a encontrar, uma única vez.

Ao menino que encontrei à porta do restaurante, nunca mais o vi, e não sei se o voltarei a encontrar.

Encontro, sim, todos os dias, outros tantos meninos que, tal como ele e o J. fazem da rua a sua casa, o seu recreio, a sua escola. Vivem na rua com amigos e é ali que inventam para sobreviver, que brincam, que jogam à bola, que dançam, que aprendem a negociar, que namoram, que sorriem, que têm medo, que são livres e crescem à força. É a rua que lhes ensina a vida.

Aprendi a olhar para a rua de outra maneira.

Aqui, não é um simples lugar de passagem. Não, não é. Quando a olhamos de longe vemos a vida a passar. A rua tem tudo e tudo é na rua. Seja o que for que estejam a pensar, aqui encontram na rua.

Ela é o verdadeiro lugar de partilha e de convívio. É dinâmico e agitado. Tudo se movimenta e acontece: as pessoas de um lado para o outro, as bancas improvisadas para vender de tudo, as lojas à beira da estrada, a banana pão assada na braseira improvisada, os meninos a vender picolé (gelado de água), elas e eles a arranjar os cabelos e as unhas, as crianças brincam sem ligar, o fumo da carne grelhada enche o passeio, o lixo que teima ficar, conversas, as mamãs zungueiras com as cores bonitas do pano africano à cintura e lenço na cabeça, ficam na venda nas estradas ou de porta em porta, a carregar os filhos às costas, com os alguidares à cabeça, o dia todo (- Ámiga, Mádrinha tem manga dá boa!, e em segundos ficamos cercados pela delicia daqueles rostos e argumentos persuasivos), os homens zungueiros correm atrás dos carros a vender de tudo, no meio na rua, o dia todo. É a base da vida das pessoas.

Através da nossa vivência aqui, vamos conhecendo de perto a história do país e das suas pessoas. Uma história que tem sido desenhada por contínuas lutas, guerras e instabilidade.

Uma história que também faz parte da nossa.

É por isso impossível não sentir o que se vive aqui, porque ao contrário do que muitos afirmam, existe afinidade entre nós e Angola. Não é só o dinheiro. Também conta, é claro, estamos aqui para ganhar a vida a trabalhar e a viver num país que faz parte da nossa história e fala a nossa língua. E com o respeito que é devido pela identidade da figura de Angola, um país que tem as suas próprias regras e formas de estar.

Viver em Luanda remete-me, todos os dias, para inúmeras ponderações. Todos os dias nos debatemos, aqui (não só pelos desafios que a cidade nos concede mas também pelo que deixámos para trás).

É um país que aguentou mais de 30 anos de guerra e tem apenas 14 anos de paz. A paz que os Angolanos queriam e lutaram, concede-lhes desafios e batalhas bem mais difíceis de superar do que a guerrilha.

A batalha de construir e gerir uma Angola grandiosa e ferida.

Uma Angola que se edifica ao ritmo das suas maiores virtudes, defeitos e bravura.

Não quero fazer juízos de valor sobre isso. Não é isso que devo abordar. Por diversos motivos, o país tem crescido ao compasso da sua existência e experiência de vida.  

Existe uma relação umbilical entre Angola e Portugal. Uma relação que já passou por vários estados. Uns bons, outros maus, outros mais ou menos. Faz parte da narrativa destes dois países.

É como os pais e os filhos. Sabem os defeitos um do outro, brigam, amam-se e respeitam-se mas acima de tudo querem o bem um do outro, pois se um dos dois não está bem, o outro sofre com isso. Tem sido assim.

E eu acredito nessa relação entre Angola e Portugal. Sinto isso. É o que sinto, independentemente de tantos fatores que possam existir alheios a isto. Só assim faz sentido aqui estar.

Há uma linha, uma ponte que nos liga. Ninguém é alheio à história da nossa relação. Boa e má, é verdade, mas são muitos anos de convivência e vida junta. A história de Portugal foi influenciada pela história de Angola, assim como a história de Angola foi influenciada pela história de Portugal.

Através da oportunidade que estou a ter de viver aqui – precisamente em mais um período difícil da história de Angola (e já agora de Portugal, também), não posso deixar de confirmar a existência de uma convivência com sentimentos que se medem ao tamanho das nossas histórias.

Aqui é fácil captar a terra quente, de ocre vermelho, os sorrisos baratos, as cores fortes e bonitas, a natureza oponente, o verde imenso, as praias de água límpida e bravias, o espetáculo de luzes de um pôr-do-sol único que nos leva ao céu e sustenta, as árvores majestosas - a vasta fauna e flora, as danças, a riquíssima arte popular e cultura, os movimentos de corpo calorosos, o som das músicas. Tudo aqui tem uma dimensão forte e diferente da nossa. Não dá para não agarrar.

Angola é um país com muitas oportunidades, e com dores das guerras ainda presentes, em termos de sofrimento humano, principalmente no meio familiar de uma classe mais desprotegida, com evidentes problemas de pobreza e com consequências na harmonia e conforto dos lares. As crianças são por acréscimo as mais prejudicadas pois a infância é-lhes muitas vezes, retirada.

Ainda ontem à porta de uma pizzaria estavam aí uns dez meninos a pedir gasosa. Eles aprendem a desenvolver técnicas de sedução e de argumentação que muitos adultos não sabem. São crianças deitadas à rua, com muito para dar. Damos-lhes dinheiro que se gasta num instante, damos-lhe comida que alimenta por um tempo, damos-lhe um sorriso, mas não conseguimos que sejam apenas crianças, sempre. O que fazer é a pergunta que me visita todos os dias. Não sei..

Muitas têm de ajudar a família por falta de meios de subsistência ou são atingidas pela violência dos pais que vivem mal pela falta de meios.

Esta realidade encaminha-os para a vida da rua, uma rua que lhes dá a oportunidade de viver as suas normas e de fugir da violência.

Ao menos a rua oferece-lhes a esperança.

Ao mesmo tempo que inventam maneiras de sobreviver, estas crianças praticam na rua a sua própria forma de viver.

Trocam a casa pela rua, a família por um grupo de amigos, a cama pelo passeio, a escola pelas emoções e vivências de um lugar sem dono e sem rosto.

Uma rua que é perigosa e com seduções fáceis, mas também, conforme tenho visto, atesta uma multiplicidade de encontros, de trocas, de brincadeiras, de realizações, de revelações, de emoções, de conversas, de namoros e de alegrias.

Existências que os ajudam a viverem através de uma imaginação única.

Reconheço nelas muitas capacidades. São meninos tão capazes como os outros, mas não têm as mesmas ferramentas.

Gostava muito de viver num lugar sem crianças de rua, mas não vivo.

Todas as crianças deviam ter as mesmas oportunidades, mas não têm.

Temos, por isso, o desafio diário de os conseguir olhar de frente; de ouvir e entender o seus mundos e realidade, e de almejar um lugar capaz de cuidar dos seus sonhos e expectativas.

Pelo menos os sonhos não têm barreiras.

O P. e o J. alteraram a direção das suas vidas e seguem o caminho do sonho e da possibilidade do melhor. É o que todos nós queremos, afinal.

O P. e o J. queriam conhecer Luanda, procuram uma casa com um espaço para os seus anseios e sonhos.

Isso e ninguém lhes podem tirar: o brilho dos sorrisos dos que sonham que o hoje pode ser melhor que o ontem.

Encaramos de frente os seus olhares e recebemos o melhor que têm. Sorrisos prodigiosos, inteligentes, admiráveis, enigmáticos e sublimes. O sorriso dos sonhos.

É o sorriso que encontrei no menino que quis conhecer Luanda.

O sorriso que ensina a acreditar, a recear e a voltar a sorrir.

É também o meu sorriso e o dos que cá vivem, viveram e sentem. É um sorriso imenso. É o sorriso de Angola…

Opinião de
Cláudia Rodrigues Coutinho

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