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Opinião Os 5 em Angola

Onde está a liberdade?

Filipa Moita

Autora da página de Facebook Os 5 em Angola, que relata as experiências de uma família portuguesa de cinco elementos que imigrou para Angola.

Para quem vem pela primeira vez a Luanda, a primeira coisa que se sente, mal se sai do avião é o calor. Um calor que nos acolhe e recebe, e que nos faz sentir logo em casa, pois de calor percebemos nós, certo? Depois entramos no aeroporto e após o controlo apertado do passaporte, entramos verdadeiramente em Luanda. E a partir daí, o que nos espera?

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O que queremos é sair do aeroporto e ver o que se passa, como as coisas acontecem, como são as pessoas, os carros, as casas, as lojas, o normal de quem chega a um País pela primeira vez. Mas para isso, aconselho a contratar um motorista, pois o trânsito e a forma de condução, em Luanda, não são brincadeira nem é para fracos. Se tivermos coragem, podemos conduzir, ninguém nos impede, mas eu confesso, ainda não ousei conduzir, só o faço ao fim de semana, pois nem todos cumprem as regras de trânsito e um simples trajecto de 3 km, pode ser uma verdadeira aventura. Se quem já conduz aqui há anos se queixa, imaginem uma pessoa que apesar de saber conduzir, teria de levar 3 miúdos nos bancos de trás, num trânsito sempre caótico e com múltiplas variáveis, como os buracos, as ruas cheias de lamas, as motas em sentido contrário, os taxistas em fila tripla e no meio desta confusão, transeuntes que passam onde querem e bem lhes apetece? Por enquanto, não me parece. Além de que, para se arranjar lugar para estacionar é missão quase impossível. Daí os motoristas serem imprescindíveis, pois levam-nos onde queremos e esperam por nós onde pedirmos. Por isso, o nosso A. deixou de ser motorista e passou a amigo. Já vivemos grandes aventuras no trânsito e já nos ajudou em muitas situações!

Chegados ao carro, temos logo de fechar as portas pois há um grande risco de se sofrer um assalto. A moda aqui é acontecer no trânsito, enquanto se espera que abra o sinal ou que o trânsito flua. De repente, abrem-se as portas e assaltam-se as pessoas. Daí ser muito importante o fechar o carro. Passado um tempo, já há uma rotina no carro, entrar, fechar as portas, pôr o cinto de segurança e ligar o ar condicionado. Tudo pacífico, adaptamo-nos pois há coisas piores na vida.

No caminho, vemos lado a lado, carros topo de gama e moços que transportam as compras em carrinhos de mão, prédios novinhos em folha ao lado de barracas ou escolas inundadas pelas ultimas chuvas, lixo amontoado nas ruas e vendedores ambulantes no meio dos carros, na estrada, a venderem de tudo, varredores de rua com máscaras na cara para evitar o pó, mulheres a vender fruta com um aspecto delicioso à beira da estrada com os seus bebés descalços e com o sorriso mais maravilhoso que já vi. Além disso, a poluição de Luanda raramente nos deixa contemplar, céu límpido. Já vi e tirei uma foto, mas não registou na perfeição e por isso, aguardo por outro céu azul. Mas não faz mal, há coisas piores na vida.

Em casa, temos de explicar aos nossos filhos que não podem nunca beber água da torneira pois correm o risco de apanhar uma doença. O tratamento da água ainda não é o melhor e para organismos que não estão habituados a isto, pode ser complicado. Mesmo sabendo que a água não é das melhores, sempre utilizei a água da torneira para lavar os legumes, para fazer a sopa e o comer, para tomar banho e lavar os dentes (há quem use água engarrafada).

No entanto, e apesar dos cuidados mínimos que tínhamos (acho que não pode haver histerias) todo o pessoal cá de casa apanhou uma gastroenterite no início mas nunca mais tivemos nada. Além disso, quando se come fora, faz-se por nunca comer saladas cruas, beber bebidas com gelo e pedir sempre água engarrafada. Se analisarmos bem isto, quem é que em viagem para um país diferente do seu, não apanha algo do género? E quem não procede da mesma forma? Penso que é normal. Também já nos habituámos a este ritual e francamente, já não nos incomoda, pois há coisas piores na vida.

Com muita pena minha, Luanda ainda não nos dá segurança suficiente para podermos ter liberdade para passear de forma descontraída na rua, pois os assaltos acontecem e os atropelamentos no passeio pelas motos e nas passadeiras são reais. E as pessoas aqui, sabendo disso, vivem de forma mais recatada, mais simples, evitando muita exposição. Quem chega a Angola já vem avisado, que não pode exibir muito nem chamar a atenção. Muito semelhante ao que me disseram quando há umas semanas fomos ao Brasil. Em terras brasileiras, fizemos questão de levar os nossos filhos à favela da Rocinha e todos adorámos. Segundo as minhas meninas, foi um dos melhores dias no Rio! E também ali deu para ver outra realidade não muito diferente dos musseques de Angola: muita pobreza, muita sujidade, muito controlo policial, algum stress do guia com a nossa segurança pois a favela estava em tumulto, fruto de algumas mortes ocorridas naquela semana, e no entanto, por trás disto, conseguimos ver, um povo super simpático que nos recebeu tão bem, que nos ofereceu a provar pastéis quentinhos feitos por uma avó super querida e bem-disposta, sumos deliciosos e um show de capoeira inesquecível em conjunto com outros casais dos mais variados cantos do mundo. E pudemos ver que, naquele mundo tão restrito e peculiar, a vida acontece nos mais variados sectores e tudo resulta. É uma verdadeira cidade dentro de outra cidade. E que linda aquela Rocinha, com milhares de casas coloridas, dispostas numa encosta verde e como pano de fundo, o mar azul! Apetece ter uma casa ali!

Mas de volta à nossa Luanda, há quem possa e opte por viver em condomínios. A zona escolhida é preferencialmente Talatona, “mais perto” da cidade e onde se pode, de certa forma, ter mais liberdade de movimentos, pois há espaços verdes dentro dos condomínios, há mais convívio e ajuda entre as pessoas. E uma simples ida a um restaurante num destes condomínios, pode devolver-nos a sensação maravilhosa de liberdade que uma cidade como Luanda ainda não consegue. E o pó, esse inimigo das nossas vias respiratórias, aqui é mais reduzido. Na cidade, fruto das obras e da construção, a qualidade do ar não é tão boa. No entanto, o clima quente e a temperatura sempre constante, faz com que as nossas crianças não andem doentes ou constipadas. E isto é bom! Bem, a não ser que o nosso filho caia da cama abaixo e tenhamos que ir visitar os médicos, por sinal, sempre bastante simpáticos e carinhosos com as nossas crianças. Vê-se evolução na área da saúde, ao contrário do que se diz, pois já há muita oferta e muita variedade de serviços médicos ao cidadão e aos mais variados preços. No entanto, é mais confortável ter um seguro de saúde, imprescindível por aqui, face aos preços praticados.

No nosso caso, temos um seguro de saúde que abrange toda a família e acesso gratuito aos medicamentos. E por conversas que vou tendo com as pessoas na sala de espera da clínica/hospital onde sempre vou, as pessoas estão a adoptar cada vez mais o seguro de saúde porque resulta! No entanto, e apesar destas melhorias, ainda se morre muito por aqui devido à malária e à raiva. No outro dia, encontrei na sala de espera, uma família de 7 em que todos os seus elementos com excepção da mãe, tinham sido mordidos por um cão e que para eles, já não havia esperança, pois o vírus da raiva já tinha iniciado a sua replicação. Estavam todos condenados. E isto deve-se ao ainda elevado número de animais abandonados e sem vacinas a deambular pelas ruas da cidade. Este episódio transtornou-me.

Ainda hoje, quando me lembro, vêem-me as lágrimas aos olhos! Isto já não devia acontecer, não em pleno séc. XXI, mas ainda acontece por aqui. Guardo a imagem daquelas 5 crianças no coração e que por 2 dias, não puderam ser salvas, apesar de terem seguro. Revejo os seus olhos tão castanhos e pacíficos, sem fazerem a mínima ideia do seu horrível destino. E olhei para o meu filho e pensei na nossa sorte. Porque não pode ser assim para todos? Vemos isto, “engolimos” sem aceitar estas atrocidades da vida e pensamos que damos valor a porcarias que não interessam para nada e com isto constatamos que há coisas horríveis na vida.

Triste

Tentar sair à noite, também não é fácil e recomenda-se, se possível, ter a ajuda do nosso motorista pois ele pode-nos deixar mesmo em frente do restaurante e tudo correr de forma pacífica. Isto, se conseguirmos ir a um restaurante aqui, pois os preços praticados, são de loucos. A comida em certos restaurantes é fenomenal mas o preço por pessoa é um absurdo!

Além de que surge outro problema, e deriva do facto de não haver por aqui, avós ou família que tome conta das nossas crianças enquanto os pais tentam tirar um tempo só para si, para relaxar ou namorar. Mas não há problema, pois entre amigos, estes revezam-se a tomar conta de crianças enquanto os papás vão sair. No próximo fim-de-semana trocam! E assim, temos pais mais contentes. Há coisas piores na vida.

À noite, em Luanda, e de manhã muito cedo, há muito controlo de documentos e de álcool e por isso, as fiscalizações ao pessoal, aos veículos e às motos são constantes, e isso é óptimo pois são estes mecanismos que fazem cumprir a lei e a este nível, vêem-se melhorias significativas. A não ser que nos passem uma multa por não termos os documentos em dia ou que nos chateiem simplesmente porque temos os vidros mais escuros que o permitido por lei, ou porque é sábado de manhã e calhámos na rifa ao estar no momento errado e na hora errada do dia. Há coisas piores na vida.

A intolerância de alguns angolanos face aos estrangeiros ainda acontece. Há angolanos que pelos seus motivos, não nos aceitam e não nos toleram. Estão no seu direito. Mas pensem comigo. Eu escolho Angola para trabalhar e para viver com a minha família e sei por amigos que já cá estavam, de como é o Pais e quais as suas dificuldades. E mesmo assim, aceito as condições e venho para cá, de livre vontade. Será que isto não é prova mais do que suficiente que acredito e aceito este País tal como é e que estou cá para o ajudar a crescer? Para ele evoluir? Para dar mais condições à sua população? Eu escolhi viver aqui, desenraizei os meus filhos para vir para aqui e tudo isto porque acredito em Angola e acredito que posso ajudar nessa tarefa. E não sou o inimigo, muito pelo contrário. Já aqui dei provas de que gosto disto e que quero continuar por aqui. Este país tem um potencial incrível e as suas gentes são do mais simples, educadas e prestáveis que há. E são verdadeiros amigos. Que outra prova de confiança posso dar ao meu mais amigo que motorista, que pedir para ir buscar os meus filhos à escola? O meu bem mais precioso nesta vida? Penso que esta aceitação generalizada irá chegar, e no entretanto, tudo bem, pois há coisas piores na vida.

Outra das situações que me tira o sono é, constantemente encontrar na rua, senhoras que com a maior das facilidades, nos “oferecem” os seus filhos para levarmos e cuidarmos, pois elas não podem. Isto corta-me o coração, demonstra o desespero de quem nem dos filhos consegue cuidar. E faz-me pensar se um dia, não adoptarei um destes bebés. Já estive para o fazer em Portugal, mas as burocracias eram tantas que dei um tempo ao processo.

E no fundo, não é difícil, basta ter casa, amor, carinho e muita saúde. O resto Deus providenciará. Se abdicássemos de mais bens materiais, que no fundo não nos fazem falta, e se adoptássemos uma criança desfavorecida e lhes déssemos um futuro, talvez não houvessem tantos meninos em instituições e o mundo seria um local muito mais agradável de se viver, pelo menos em consciência. E para isso acontecer, primeiro temos de deixar de ser tão egoístas e olhar menos para o nosso umbigo. Ajudar o próximo, é dos melhores sentimentos que há! Acreditem!

E contesto aqui, o que alguns afirmam, que só “critico” Angola? Pois eu não critico um País que tão bem me acolheu, que tão facilmente me fez sentir em casa e que tão docemente recebeu os meus filhos nos braços. E por isto, agradeço ao colégio Português, à creche TreeHouse e aos meus amigos angolanos, que já ultrapassam em número, os dedos das minhas mãos. Eu apenas observo o que me rodeia, e o que todos vemos diariamente por aqui. Mais nada.  

Todos os países têm problemas e nenhum é melhor ou pior que o outro. Em Angola, apenas escrevo o que observo, sem fazer juízos, tentando transmitir por palavras, o que se passa numa cidade que muitas pessoas desconhecem e que, a meu ver, é mal apreciada, em resultado do que muito se inventa sobre ela. É preciso estar cá para viver isto e só depois se pode realmente opinar sobre o que se ouve. E é isso que pretendo, desmistificar muita coisa negativa que se fala e dar a conhecer os seus muitos atributos e potencial.

Muito do que se ouve de negativo é verdade mas segundo amigos que já cá estão há mais de 10 anos, Angola evoluiu muito, e muito devido ao mérito das suas gentes, que apesar de ainda relembrarem a guerra com pesar, acreditam em si e querem levar este País para a frente, trabalhando de sol a sol em condições precárias. E chamar de precário é pouco!

Não me canso de dizer que Angola é linda, tem um encanto que nos atrai e nos fascina e um potencial enorme de crescimento. Cabe-nos a nós, que aqui estamos, fazer com que este país cresça de forma saudável, com bons alicerces e que providencie um futuro melhor às gerações vindouras, pois elas merecem! Por isso acho de bom senso, não criticar algo ou alguém antes de se conhecer bem essa realidade, sob pena de tirarmos conclusões precipitadas, muitas vezes erradas e de ferir sensibilidades. Já sofri isso na pele!

Na qualidade de expatriada num País que agora também é a minha casa, só falta “uma pequena grande coisa” para ser perfeito: Ter mais Liberdade! E isto é umas das coisas que mais pode custar na vida!

Mais liberdade para sem medo, poder ir com os meus filhos onde quiser, sem receios e com a garantia de que nada de mal nos acontecerá.

Isto é o que de pior nos pode acontecer na vida. Num momento termos liberdade total  e no momento seguinte, deixarmos de a ter ou ela estar condicionada a uma série de regras. Não devia ser assim. Ninguém merece sentir-se “preso” na sua liberdade, liberdade essa que lhe permite desfrutar do mundo da melhor maneira e de forma saudável, capturando o que a vida tem de melhor. É isso que eu quero dizer às minhas filhas aqui em Angola, vão para a rua e divirtam-se, façam amizades e sejam felizes, sem terem sobre elas, a nuvem negra do medo e do perigo! 

E perguntam vocês o que nos leva a estar aqui quando a liberdade é tão limitada?

Eu digo…. quando as coisas boas superam as menos boas.

Quando nos adaptamos e aceitamos esta realidade tal como ela é, mas sempre procurando torná-la melhor! Ao fazer isto, amenizamos os maus momentos e seguimos em frente.

Não é difícil pois somos tão moldáveis ao ambiente e a presença de amigos ajuda a passar estes momentos menos bons!

Claro que há dias mais difíceis de aceitar. Há dias em que odiamos e amamos Angola, num misto de sensações. Mas no fim, compensa-se esta intolerância com o acreditar no próximo e no futuro deste País. Temos de acreditar, certo? E temos de ter esperança que melhores dias virão, quer para nós estrangeiros (detesto esta palavra, tenho de arranjar outra) quer para os angolanos e todos aqueles que tal como nós, fazem de Angola, agora, a sua casa.

E eu acredito que esta realidade vai mudar, tem tudo para isso acontecer, e enquanto isso não acontece, estarei por cá, com a minha família, a ajudar neste crescimento e nesta mudança!

Fiquem bem, Ya?

Opinião de
Filipa Moita

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