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Opinião Estamos em Angola!

As melhores coisas que tenho tido em Angola não são as praias por descobrir, nem o encanto do pôr-do-sol

Cláudia Rodrigues Coutinho

Casada e com 2 filhos. Deixou a vida que tinha, em Portugal, e experimenta, desde Setembro 2015, a dimensão de uma família lusa, a viver, em Angola.

As melhores coisas que tenho tido em Angola não são as cores quentes, contentes, de um Verão constante; nem o encantamento do sol, veemente, que se põe deslumbrante; nem as praias por descobrir; nem a doçura das mangas e dos ananases, e as delicias da moamba e caldo de peixe e marisco; nem a luz ocre que toma a alma; nem as músicas entusiasmadas; nem o radioso dilúculo da Restinga; e nem a natureza abundante: o melhor que tenho tido de Angola são os encontros com a sua vida.

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Mesmo com as adversidades, o desequilíbrio, a escassez e a desordem, dou por mim a gostar deste país com uma paixão silenciosa e gigante. Contenho conversas, e olhares, e desvendo pessoas, mulheres, crianças, homens bons, a carregar uma gravidade - diária e extraordinariamente adversa - da invenção da sobrevivência e do sorriso.

Muitas vezes não precisamos de falar. O diálogo encaminha-se para um sábio silêncio, compreensão, que toma o lugar do rumor de muitas palavras.

Há uns dias conheci a Luísa (nome ficticio) e durante a nossa conversa mostrou-se curiosa em saber como tinham sido os meus partos. Assisti ao seu interesse, e a uma atenção crescente, inteira e verdadeira, enquanto lhe contava das minhas epidurais, das respirações treinadas, da expulsão, do recobro e da alegria.

A Luísa explicou-me que tinha 4 filhos; e, desde o primeiro parto, nunca mais ninguém a enganou.

Chegou ao hospital de Luanda, às 08h00 da manhã, colocada numa cama em quarto partilhado, e a partir dessa hora deixou de comer e de ter alguém da família para a acompanhar.

Tinham começado umas tais dores frequentes, e fortes, que iam e vinham. Para tentar aliviar tamanho sofrimento resolveu manter-se imóvel, com as pernas bem fechadas e trancadas, até as dores partirem. Tinha sido a melhor forma que arranjou, na hora de aflição, para enfrentar as ditas dores.

Às 19h00 as tais dores, cada vez mais fortes e frequentes, teimavam continuar; e ela lá ia acudindo, sempre, da mesma forma: imóvel e com as pernas bem fechadas. Nessa altura, contou-me, sentia-se exausta e fraca. Ouviu uns médicos falar sobre ela mas não entendeu.

Na passagem para a meia noite as dores agravavam-se e continuava sem saber nada. 

Após uma nova vaga de dores, intensas, a Luísa distinguiu um médico - que auscultava a mulher da cama ao lado - a dirigir-se na sua direção. Tinha acabado de entrar no novo turno e queria saber se era ela a mulher que estava em trabalho de parto desde as 08h00 da manhã.

A Luísa relatou-me a imagem da expressão vaga, de espanto, daquele médico; bem como do momento da pergunta que nunca mais esqueceu: “Como queres que o bébé nasça se fechas as pernas? Na próxima contração abre as pernas e faz toda a tua força”.

Fazer força? Contrações? Do que estava a falar?

(Sentia-me a encolher. Qual epidural, quais mimos dos enfermeiros, e médicos, da maternidade do Hospital de Santarém e CUF Descobertas).

A Luísa não teve forças para responder que, durante aquelas horas, todas, ninguém lhe tinha falado, explicado nada. Será que devia ter perguntado?

Com a entrada de uma nova vaga a Luísa seguiu as indicações do médico: e o bébé saiu disparado, sem demoras. 

Não conseguiu dizer, nem ouvir, mais nada. Adormeceu.

“Acordei, de madrugada, com a minha colega de cama a chamar-me com o choro do bébe. Sentia-me muito fraca. Tinha fome”.

“Às 06h00 vi uma funcionária do hospital a passar e chamei-a: pedi-lhe comida. Serviu-me um chá deslavado, fraco de açúcar e gosto, e um pão seco e duro“. 

Nunca mais larguei a Luísa. Recordo-a todos os dias. Do jeito incrivelmente simples, e lúcido, com que me contou a sua história. Dos olhos, sérios e bons, a espelhar uma sabedoria única da vida, e do rosto que luzia uma dignidade ímpar – de quem sabe, como ninguém, do seu acaso.

Sinto-me uma felizarda por ter encontros como estes.

Na desumanidade, na miséria, e na extensa dor, há um lugar harmonioso, uma alegria serena, uma verdade séria, de quem sorri com sentido e olha com o coração. De quem se abre para a vida e sabe-a, como ninguém.

A Luísa sorriu na razão da sua integridade e ânimo: 

“Nunca mais me vou esquecer daquele pão seco e duro. Foi a melhor refeição da minha vida”.

 É o melhor que tenho tido. 

Uma paz de espírito, única, que consigo achar.

Opinião de
Cláudia Rodrigues Coutinho

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