Mesmo com as adversidades, o desequilíbrio, a escassez e a desordem, dou por mim a gostar deste país com uma paixão silenciosa e gigante. Contenho conversas, e olhares, e desvendo pessoas, mulheres, crianças, homens bons, a carregar uma gravidade - diária e extraordinariamente adversa - da invenção da sobrevivência e do sorriso.
Muitas vezes não precisamos de falar. O diálogo encaminha-se para um sábio silêncio, compreensão, que toma o lugar do rumor de muitas palavras.
Há uns dias conheci a Luísa (nome ficticio) e durante a nossa conversa mostrou-se curiosa em saber como tinham sido os meus partos. Assisti ao seu interesse, e a uma atenção crescente, inteira e verdadeira, enquanto lhe contava das minhas epidurais, das respirações treinadas, da expulsão, do recobro e da alegria.
A Luísa explicou-me que tinha 4 filhos; e, desde o primeiro parto, nunca mais ninguém a enganou.
Chegou ao hospital de Luanda, às 08h00 da manhã, colocada numa cama em quarto partilhado, e a partir dessa hora deixou de comer e de ter alguém da família para a acompanhar.
Tinham começado umas tais dores frequentes, e fortes, que iam e vinham. Para tentar aliviar tamanho sofrimento resolveu manter-se imóvel, com as pernas bem fechadas e trancadas, até as dores partirem. Tinha sido a melhor forma que arranjou, na hora de aflição, para enfrentar as ditas dores.
Às 19h00 as tais dores, cada vez mais fortes e frequentes, teimavam continuar; e ela lá ia acudindo, sempre, da mesma forma: imóvel e com as pernas bem fechadas. Nessa altura, contou-me, sentia-se exausta e fraca. Ouviu uns médicos falar sobre ela mas não entendeu.
Na passagem para a meia noite as dores agravavam-se e continuava sem saber nada.
Após uma nova vaga de dores, intensas, a Luísa distinguiu um médico - que auscultava a mulher da cama ao lado - a dirigir-se na sua direção. Tinha acabado de entrar no novo turno e queria saber se era ela a mulher que estava em trabalho de parto desde as 08h00 da manhã.
A Luísa relatou-me a imagem da expressão vaga, de espanto, daquele médico; bem como do momento da pergunta que nunca mais esqueceu: “Como queres que o bébé nasça se fechas as pernas? Na próxima contração abre as pernas e faz toda a tua força”.
Fazer força? Contrações? Do que estava a falar?
(Sentia-me a encolher. Qual epidural, quais mimos dos enfermeiros, e médicos, da maternidade do Hospital de Santarém e CUF Descobertas).
A Luísa não teve forças para responder que, durante aquelas horas, todas, ninguém lhe tinha falado, explicado nada. Será que devia ter perguntado?
Com a entrada de uma nova vaga a Luísa seguiu as indicações do médico: e o bébé saiu disparado, sem demoras.
Não conseguiu dizer, nem ouvir, mais nada. Adormeceu.
“Acordei, de madrugada, com a minha colega de cama a chamar-me com o choro do bébe. Sentia-me muito fraca. Tinha fome”.
“Às 06h00 vi uma funcionária do hospital a passar e chamei-a: pedi-lhe comida. Serviu-me um chá deslavado, fraco de açúcar e gosto, e um pão seco e duro“.
Nunca mais larguei a Luísa. Recordo-a todos os dias. Do jeito incrivelmente simples, e lúcido, com que me contou a sua história. Dos olhos, sérios e bons, a espelhar uma sabedoria única da vida, e do rosto que luzia uma dignidade ímpar – de quem sabe, como ninguém, do seu acaso.
Sinto-me uma felizarda por ter encontros como estes.
Na desumanidade, na miséria, e na extensa dor, há um lugar harmonioso, uma alegria serena, uma verdade séria, de quem sorri com sentido e olha com o coração. De quem se abre para a vida e sabe-a, como ninguém.
A Luísa sorriu na razão da sua integridade e ânimo:
“Nunca mais me vou esquecer daquele pão seco e duro. Foi a melhor refeição da minha vida”.
É o melhor que tenho tido.
Uma paz de espírito, única, que consigo achar.
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A Opinião de Janísio Salomão Janísio Salomão