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Jacob Cachinga, o refugiado angolano prestes a tornar-se mestre que quer voltar ao país e fundar uma universidade

Jacob Cachinga desde cedo se viu condenado a uma vida difícil. Nasceu em Moxico, nunca conheceu o pai e com apenas dois anos de idade perdeu a visão. Sem perspectivas para o futuro, viveu nas ruas durante algum tempo, escapando por entre as balas da guerra civil. Com 11 anos, foi levado para o Brasil através de um acordo firmado entre os governos brasileiro e angolano. Hoje, com 31 anos, está prestes a tornar-se mestre. O refugiado angolano mantém a chama de Angola viva no seu coração e um dia sonha regressar ao seu país e criar uma universidade.

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A sua história começa no Moxico. Quando a sua mãe estava grávida, o pai foi convocado para servir na guerra civil e nunca regressou a casa. "Nunca pude conhecê-lo", contou, citado pela revista Piauí.

Sem um homem presente na casa e sendo o filho mais velho, Jacob tinha a função de ajudar a família. No entanto, com apenas dois anos de idade a vida pregou-lhe a sua primeira rasteira: teve sarampo e acabou por perder a visão. "Naquela época, toda a economia de Angola era voltada para a guerra. A assistência em saúde não existia. Crianças como eu perdiam a visão ou morriam todos os dias por causa do sarampo", afirmou.

"Como não havia ajuda do governo, se uma criança ficasse cega ela tornava-se inválida, não saía de casa. Mas, para dar esperanças à minha mãe, eu tentava levar uma vida normal. Brincava com outras crianças, subia em árvores, corria, pulava", conta.

Foi com a sua irmã mais nova que começou a aprender a escrever. Quando ela começou a ir à escola, passou a ensinar Jacob sobre as coisas que ela própria aprendia. "Eu segurava num pedaço de carvão e ela guiava a minha mão, ensinando o desenho de cada letra. A minha irmã também lia poemas para mim, e eu decorava todos. Isso fazia com que me achassem inteligente", revela.

Sempre a mudar de sítio devido à guerra, foi aos oito anos de idade que começou a trabalhar. Ia para as ruas vender sambapito e rebuçados para tentar ajudar com as despesas da casa. Contudo, havia muitos vendedores: "Quando os clientes chamavam "Sambapito", os comerciantes tinham que correr até o cliente. Vendia quem chegasse primeiro. Sendo cego, estava sempre em desvantagem".

Com dez anos de idade, Jacob decide ir morar para a rua. "Disse à minha mãe que me queria matar, porque não via sentido na vida", afirmou.

Dormia sob as marquises de prédios e vivia das drogas. Sem qualquer esperança para o futuro, tornou-se conhecido no Moxico, porque era o único a vaguear por aquelas ruas assoladas pelo terror da guerra. Foi assim que o seu nome chegou aos ouvidos do Governo.

O Executivo "propôs que eu me mudasse para o Brasil, para estudar por meio de um convénio entre os dois países". Com apenas 11 anos, foi enviado para o Brasil e aí a sua vida começou a tomar outro rumo.

"Éramos 24 crianças e adolescentes angolanos, todos cegos, atendidos por esse mesmo convénio", revelou.

De acordo com Jacob, as crianças ficaram numa instituição de ensino para deficientes visuais em Juiz de Fora, mas eram maltratados pelo responsável. A história tornou-se pública e o Governo decidiu transferir as crianças para Curitiba.

Foi aí que aprendeu braile e a andar de bengala. No ano seguinte foi para a escola, tendo concluído o ensino. Rumou à universidade, tendo entrado como bolsista no curso de educação física na UniBrasil.

"Entre o fim de 2014 e o começo de 2015, faltando um ano para eu me formar, o governo angolano decidiu levar-nos de volta para nosso país. Nós queríamos terminar a graduação, para poder retornar numa condição de vida melhor, mas eles fizeram muita pressão. A Uninter e a imprensa apoiaram-nos, e por isso nós conseguimos ficar. Ainda assim, o governo cortou a nossa bolsa", contou, revelando que se avizinharam tempos difíceis.

Depois de formado não conseguia emprego, então decidiu fundar um projecto de dança para pessoas cegas, o "Dançar Sem Ver". Sem receber qualquer remuneração com o projecto, Jacob dá aulas voluntariamente em espaços cedidos por academias de dança, contando com a ajuda de duas professoras voluntárias.

A par do projecto de dança, juntamente com os seus amigos, faz parte do coral Vozes de Angola. "Cantámos no Teatro Guaíra, até mesmo na Sala São Paulo. Em 2005, o presidente Lula ouviu falar do grupo e nos convidou para ir a Brasília, onde nos apresentamos ao lado do então ministro da Cultura, Gilberto Gil. Cantamos pela última vez pouco antes da pandemia, no dia 3 de Março de 2020, na Capela Santa Maria, que fica no Centro de Curitiba", conta.

Em 2018 deslocou-se até à Pontifícia Universidade Católica do Paraná para rever uns amigos e procurar emprego. Em conversa com os amigos falou sobre a sua ambição em se inscrever num mestrado e se tornar professor como o pai. A sua história foi ouvida por Mário Sanches, professor e fundador do programa de pós-graduação em bioética, que decidiu ajudar.

"Comecei a cursar algumas disciplinas isoladas desse programa e, pouco tempo depois, fui contemplado por uma bolsa voltada para imigrantes", indicou, completando que depois de tantos obstáculos está prestes a tornar-se mestre.

A pesquisa de mestrado chama-se "A educação inclusiva à luz da bioética de protecção em Angola". "Há algum tempo, constatei que Angola é signatária de uma série de tratados internacionais sobre inclusão que até hoje não se converteram em nada, na prática. Os angolanos continuam vulneráveis, como sempre estiveram", afirma.

A ambição de tornar o seu país em algo melhor continua dentro de si. Depois de apresentar a sua tese, em Fevereiro ou Março, Jacob espera tornar-se professor e um dia regressar a Angola e fundar uma universidade.

"Um dia ainda voltarei para Angola e fundarei uma universidade (...). Como gosto de dizer, quem enxerga só com os olhos não vê muita coisa, na verdade. Eu, que sou cego, enxergo com a alma e com o coração", completou.

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