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“Houve um período de negação em Angola” sobre a sua história, considera artista

O artista angolano Kiluanji Kia Henda, em entrevista à agência Lusa, considerou ter havido "um período quase de negação na sociedade angolana” sobre a sua história, do colonialismo ao esclavagismo e à Guerra Civil.

: “Red Light Square – history is a bitch project: Kinaxixi”, um projecto de Kia Henda sobre o Largo de Kinaxixi, em Luanda
“Red Light Square – history is a bitch project: Kinaxixi”, um projecto de Kia Henda sobre o Largo de Kinaxixi, em Luanda  

"Penso que houve um período quase de negação, na sociedade angolana, na reflexão sobre esses períodos históricos [o colonialismo, o período pós-independência em 1975 e a guerra civil]. O que para mim é extremamente preocupante", afirmou, questionado pela Lusa sobre a perspectiva histórica do seu país.

Nascido em 1979, o trabalho de Kia Henda aborda a memória colectiva, espaços públicos e sociedade. Tem reflectido sobre o pós-colonialismo em várias exposições e criações, "desde 2010", com trabalhos como "Redefining the power", sobre os movimentos pela retirada de monumentos, que têm emergido na América, na Europa e também em África.

A caminho do Festival Internacional de Cinema de Roterdão, onde apresentará a performance "Red Light Square – history is a bitch project: Kinaxixi", sobre o Largo de Kinaxixi, em Luanda, um projecto desenvolvido em residência no Porto, Kia Henda espera ainda instalar, este ano, o Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas, em Lisboa.

Na opinião do artista, há "uma grande relutância em enfrentar esses fantasmas do passado", mantendo "ciclos de violência que continuam abertos, desde a escravatura, desde a colonialização".

"Depois tentamos debater sobre o pós-colonialismo quando nem sequer tivemos o cuidado de debater o pós-esclavagismo, o impacto que teve. (...) Há uma data de períodos acumulados que não tivemos abertura para debater", comenta.

De momento, em Angola, refere, vive-se "um período de grande indignação", sobretudo "por tudo o que aconteceu nos últimos 15 anos", da corrupção à "delapidação dos bens públicos", e essa "fixação com o presente" leva a que ninguém tolere "ou se dê ao trabalho de fazer uma reflexão que também envolva uma perspectiva histórica sobre o que vivemos hoje".

"Este é um erro contínuo, porque nunca poderemos ter uma concertação de pensamentos em alguma direcção, se não tivermos acesso e debatermos a nossa História", acrescentou.

Da sociedade angolana para a portuguesa, vê neste país "uma espécie de cumplicidade - continua a haver -, naquilo que acontece em Angola".

"Quando se fala sobre a situação em Angola, o caos social, a tremenda crise económica, e se tenta falar de colonialismo, vocês [Portugal] dizem: 'Não quero falar sobre isso, o que é que interessa? Quero falar de hoje, sobre a lavagem de dinheiro...' E se olharmos e pensarmos, para onde foi parar todo esse capital delapidado pelo Estado angolano? Mais uma vez, para o antigo poder ocidental. Grande parte, não todo, mas grande parte", critica.

Para fazer frente a essa atitude, defende, "é importante que haja uma reflexão séria sobre esses distintos períodos da História", com uma frontalidade que questione "o que é isso de ser povos irmãos".

Sem essa abertura e disponibilidade, de "forma sincera e apaziguadora, não incitando ao ódio ou ao despertar de fantasmas", é difícil "tomar um rumo novo, aquilo a que se possa chamar uma verdadeira irmandade".

"Temos de ter consciência que, ao longo de toda essa história, muita gente viveu traumas, pessoas ficaram com vidas completamente desestruturadas, e existe a necessidade de que o debate seja mais claro e aberto", considerou.

Para "que haja uma redenção", reforça o artista, é preciso "a coragem de admitir esses momentos de vergonha", e não manter "essa relutância" em torno do que "é a formação da identidade portuguesa, que passa por esse momento das 'Descobertas', das colónias".

Para Kia Henda, é preciso "ter a coragem de olhar e pensar 'Bem, isto que consideramos a nossa identidade tem uma data de pontos trágicos, uma data de momentos vergonhosos'", afirmou. "E muitas vezes existe essa relutância".

Ainda assim, mantém-se "muito optimista" quanto ao futuro a curto prazo, sobretudo por ver que "existe uma juventude cada vez mais consciente", em Angola e em Portugal, com "vontade de enfrentar essas questões sociais e históricas, que até hoje perturbam".

Afirmando "toda a solidariedade" para o movimento internacional Black Lives Matter, que considera um exemplo, vê uma "revolta que vivia dentro de muitas pessoas finalmente a sair à rua", encontrando a sociedade num "momento muito especial", sem "caminho de volta".

"Quando tem de acontecer, o poder sai das instituições, sai dos lugares regidos pelos políticos. Porque o poder está nas ruas, em quem tem de enfrentar e viver o dia-a-dia", reiterou.

As manifestações não são, disse, "algo que aconteceu em 2020 e fica por aí".

"Neste momento, está a ocorrer uma mudança radical sobre questões fundamentais, como as questões raciais, do pós-colonialismo, sobre como nos queremos sentir representados, [e sobre] aquilo que acreditamos poder ser celebrado ou não", garantiu.

"Fala-se de um grande choque de crenças distintas, visões sobre o mundo, mas não há quem possa travar a evolução. Podemos chamar de evolução a essa empatia sobre o que vivem as pessoas oprimidas", rematou.

Artista multidisciplinar, que trabalha sobretudo com a fotografia, o vídeo e a performance, Kia Henda tem como marcas do trabalho a reflexão sobre a memória colectiva e os espaços públicos.

Em 2012, recebeu o Prémio Nacional de Arte e Cultura, em Angola, e, em 2017, o Frieze Artist Award, atribuído pela feira de arte londrina com o mesmo nome, dedicado a jovens emergentes.

Já marcou presença em iniciativas como a Bienal de São Paulo, e foi seleccionado para exposições no Centre George Pompidou, em Paris, em 2020, na Tate Modern, em Londres, em 2018, e no Guggenheim de Bilbau, em 2015, o mesmo ano em que fez parte de uma mostra no Smithsonian, em Washington.

Nas Galerias Municipais da Avenida da Índia, em Lisboa, tem patente até hoje a exposição "Something Happened on the Way to Heaven", centrada na expectativa de imigrantes que atravessam o Mediterrâneo, de virem a encontrar um Paraíso na Europa, que não encontram.

O memorial da escravatura em Lisboa, intitulado "Plantação – Prosperidade e Pesadelo", tem data prevista de conclusão no final do primeiro trimestre deste ano.

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