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Cultura

Angola, o país que “deu” a Capoeira ao Brasil

No século XVI, milhares de africanos levados à força para o Brasil resistiam à sua nova condição de escravos, praticando uma dança-luta acompanhada de música que evocava as suas raízes.

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Hoje, estes movimentos acrobáticos ressurgem nos arredores de Luanda onde praticantes de Capoeira Angola revivem aquele que será o estilo mais próximo do que seria “jogado”, na altura, pelos escravos.

Segundo os estudiosos, na origem da arte brasileira, está uma dança tradicional do sul de Angola, o Engolo, praticada em roda, ao som ritmado de cânticos e batuques, tal como a Capoeira.

Num salão quente e abafado de Viana, município da província de Luanda, os capoeiristas seguem, atentos, a orientação do Mestre João Grande, uma referência mundial da Capoeira Angola que, aos 84 anos, ainda faz ecoar uma voz troante num cântico marcado pelo ritmo do berimbau.

Lentamente, os capoeiristas começam a “jogar”, sempre “em baixo”, como determinam as regras da Capoeira Angola, que mantém os praticantes junto ao chão, ao contrário das acrobacias aéreas e golpes rápidos que caracterizam a Capoeira Regional, criada na Bahia.

“A Capoeira Angola vem de baixo, é como um pé de planta que vai crescendo”, explica João Grande, que foi discípulo de Mestre Pastinha, o principal impulsionador e divulgador deste estilo, e está em Luanda para participar no I Festival de Capoeira Angola, que terminou esta Segunda-feira.

“A Capoeira é a minha vida”, proclama, contando que começou a praticar a modalidade em 1950 com Mestre Pastinha que, por sua vez, a terá aprendido com um angolano.

“Antes de ele morrer disse assim: a Capoeira Angola está aqui no Brasil e vai voltar para Angola de novo. A Capoeira de Angola é a semente e nunca pode morrer”, afirma o Mestre que continua a transmitir o seu saber a alunos de todo o mundo.

Garante que a prática é acessível a qualquer um: “É para todo o mundo, é para homem, menino e mulher. Só não aprende quem não quer”.

Uma arte que nasceu como dança, mas era na realidade “uma luta para vencer o chefe”, com a música a ajudar no disfarce, diz.

“Os escravos levaram como dança e depois tornou-se capoeira. Faziam dança e quando o inspetor chegava, diziam: ‘a gente estamos brincando aqui, fazendo uma dança”, relata.

Por isso, tal como os movimentos ágeis, a música da “bateria”, o grupo de tocadores de berimbau e percussões da roda de Capoeira, é indissociável desta prática, destaca João Grande.

“A música é a alegria da Capoeira. Cantar dá força e alegria ao jogador e para quem está a apreciar. É como o passarinho que cantando alegra os outros”.

E são os capoeiristas que fabricam os seus próprios instrumentos.

Mário Epalanga, professor do grupo Uavala e praticante de Capoeira Angola, mostra como se faz um berimbau.

“Nada do que está aqui é de outra parte do mundo, mas sim de África. Temos uma cabaça, que no passado se usava para colocar mantimentos e conservar água fresca, e temos aqui um arame. O que usamos é de pneu”, descreve, percutindo o fio com a baqueta de madeira.

A verga, que “a gente tira da mata”, une as duas extremidades do arame, à semelhança de um arco e completa o instrumento.

Na outra mão, segura um “caxixi” artesanal, uma espécie de chocalho feito de um entrançado de palha com sementes no interior, que acrescenta ritmo à bateria.

Apresenta a Capoeira Angola como “uma dança que traz muita arte junta”, um jogo “feito no chão, com muita mandinga [truque], muito molejo [balanço]” e “muitas ligações fortes” a Angola.

Os estudos que têm sido desenvolvidos revelam que muitas semelhanças entre a Capoeira e o Engolo, pelo que a arte brasileira terá sido um “desenvolvimento daquilo que já existia”.

“Felizmente está de volta a Angola”, sorri o professor.

Além de “muita interligação em movimentos”, o Engolo tem também bateria como a Capoeira “tem palmas, tem cantoria” e, sobretudo, “tem de ter muita energia”.

É esse “fundamento, essa cultura e tradição” que os praticantes de Capoeira Angola querem resgatar.

Mas falar de Capoeira não é só falar de movimento e de bateria, continua Epalanga. É falar das histórias do passado porque “muitos dos nossos ancentrais foram daqui para o Brasil”, relembra, assinalando que “a Capoeira foi um mecanismo de luta de muita gente”. Num ambiente de opressão, “o escravo encontrava refúgio na capoeira”, sublinha Epalanga, para quem “a Capoeira ajudou muito na libertação do povo negro” e serviu para lutar contra a repressão”.

A arte esteve proibida até aos anos 30, mesmo após a abolição da escravatura em 1888. “Hoje, graças a Deus, já é património mundial”, congratula-se o capoeirista, notando que a prática está também a aumentar em Angola.

Mateus Sobrinho, de 16 anos, é um dos jovens que acompanha, silencioso e concentrado, o “jogo” dos mais experientes, enquanto aguarda a sua vez de entrar na roda.

Começou em Novembro, mas “desde criança” que apreciava a arte particularmente atraído “pela ginga e o som do berimbau”. Aprender “não é difícil”, mas exige muita prática, admite.

Mateus é apenas um entre os milhares de praticantes desta arte nascida no Brasil, atualmente espalhada pelo mundo, que ajudou a enfrentar a violência da escravidão e sobrevive hoje, orgulhosamente, como umas das suas principais manifestações culturais.

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