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Opinião Paleio Alheio

A Moral da história

Cláudio Alexandre

Cláudio Alexandre, contista, cronista, romancista e contabilista. Licenciado em Gestão de finanças, prefere contar palavras que números, por uma razão, as palavras são contáveis, os números não.

Augusto Moral, diziam as bocas pequenas que o individuo carregava com ele esse sobrenome porque fora em toda sua vida um grande professor de educação moral e cívica. Acontece que Augusto Moral tinha algo muito mais interessante que seu nome, a suas filhas gémeas Ébony e Milletus Moral.

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Milletus tinha em si a beleza de uma cidade. Robusta, seu corpo parecia ter a solidez própria de aço e betão, e a formosura arquitetónica de arranha-céus modernos. Suas frequentes pinturas davam um toque final à beleza natural do seu rosto que as vezes se escondia por trás do cabelo negro e espesso como alcatrão.

Ebony tinha em si a beleza de um povo. Beleza desnuda, seu rosto estava sempre exposto ao mundo embora com o tal segredo que só um patrício desvenda. Seu corpo desenvolvera tal um povo ilhéu longe da miscigenação desenvolve, único e puro.

Embora gémeas idênticas tinham personalidades diferentes. Por exemplo, Milletus nunca dispensava uma conversa ocasional com um estranho por acreditar que as pessoas são as legítimas fontes de sabedoria, já Ébony era um pouco mais recatada, tímida até, diferente da sua irmã não confiava tanto nos seres humanos, vivia no seu próprio mundo e só abria mão dele quando precisava mesmo ligar-se ao resto do mundo.

As diferenças entre as duas eram proporcionais às semelhanças, e isso estabelecia um ponto de balanço no mundo que as rodeava. As pessoas do bairro onde as gémeas viviam conheciam-nas tão bem que usavam-nas como a analogia perfeita para aprender a viver em sociedade.

Já Augusto Moral por ser um professor exímio, e um verdadeiro exemplo de moralidade e civismo, fora promovido. Num universo de prestigiados professores foi Augusto Moral o escolhido para ser o diretor de uma escola lá nos confins.

Quando Augusto Moral chegou nos confins percebeu logo que estava diante de uma sociedade rudimentar, não tão rudimentar quanto o homem das cavernas, mas rudimentares o suficiente para desconhecerem a palavra rudimentar. Augusto já desconfiava que isso seria um problema.

As gémeas (ou jingongo para o povo dos confins) rapidamente começaram as fazer as delícias dos olhos e ouvidos dos homens daquele vilarejo esquecido. Os homens mais velhos encantavam-se sempre que viam Ebony passar, o seu recato lembrava aos mais velhos a mulher dos sonhos que eles nunca chegaram a ter, seu andar gingado por causa das ancas fartas faziam ressuscitar membros nos mais velhos que já se davam por mortos, as curvas cobertas pelas roupas decentes faziam a imaginação dos senhores capotar quando tentavam imaginar as curvas fechadas do corpo nu de Ebony, já os jovens daquelas terras amargas se encantavam sempre que ouviam Milletus falar, pois a voz dela era como açúcar em seus ouvidos, tão jovem e já com uma sabedoria de soba, assim diziam os rapazes. Para eles, a lindeza extravagante de Milletus era apenas um adorno à sua brilhante mente. Era já praxe ele rodearem Milletus boquiabertos enquanto ouviam-na falar com tanta propriedade como se as palavras fossem propriedades sua.

Por ser uma sociedade um tanto quanto primitiva, a paz reinava entre os homens e o respeito era cultura, por isso as reuniões noturnas em volta da fogueira aconteciam regularmente em prol da irmandade e harmonia entre os homens daquele lugar. As mulheres nunca faziam parte das reuniões mas eram elas quem preparavam os comeres e beberes dessa pequena festa onde os homens mais velhos aproveitavam o momento para realizar o ritual de passagem do testemunho para os homens mais jovens. A Primeira reunião depois da chegada das gémeas corria lindamente até um jovem que não aguentava mais guardar em seu peito um forte sentimento confessar seu amor impossível por Milletus. Os outros jovens solidarizaram-se com o tal, pois também estavam apanhados por Milletus, foi então que um dos homens mais velhos numa tentativa de consolar o jovem perdidamente apaixonado, vociferou:

- Meu caro rapaz, a menina Milletus é sim um poço de qualidades, mas ela não se compara ao mar de virtudes que é a sua irmã Ebony. Os outros homens mais velhos apoiaram a afirmação do outro enquanto os jovens olhavam absortos ao mais velho que proferira aquilo que lhes soara a um disparate. Fez-se silencio até as gargalhadas zombeteiras surgirem feito chuva em dia de sol.

- Aquela tímida! Exclamou um dos jovens em meio as gargalhadas, o que fez as gargalhadas ficarem mais fortes e insuportáveis para os ouvidos dos mais velhos. Criadas as condições desencadeou então um debate com proporções imensuráveis e com ínfimas possibilidades de consenso. Naquela noite os homens não caminharam para as suas casas juntos como era de praxe, devido ao debate as partes tomaram caminhos diferentes, os mais velhos foram para direita e os mais jovens foram para a esquerda. A partir daquela noite todas as reuniões resumiam-se no paleio sobre qual das Moral era a melhor entre as Moral.

Assim foi até numa certa noite em plena reunião um mais velho agastado com a falta de bom senso dos jovens (segundo ele mesmo) chamar todos os jovens de tolos. Nunca, mas nunca mesmo os mais velhos se dirigiam com insultos aos jovens, surpresos e completamente ofendidos os jovens enfureceram-se, e aconteceu do mais bravo entre os jovens levantar a voz contra os mais velhos.

- Sim nós somos tolos, mas tolice com o tempo passa, já essa vossa intransigência e arrogância vai vos acompanhar debaixo da terra. Era claramente o fim da harmonia entre as gerações naquele povoado, consequentemente o fim das reuniões a volta da fogueira.

Aquilo começou a gerar suspeitas entre as mulheres que não eram mais solicitadas para preparar beberes e comeres para as reuniões. Não tardou para o sexto sentido feminino confirmar as suspeitas, alguma coisa se estava a passar naquele lugar. Foi então que algumas mulheres juntaram-se e foram visitar a mulher mais fofoqueira do vilarejo, esta nem esperou que as mulheres passassem a porta de sua casa e largou a notícia assim mesmo, como uma bomba.

- Sim, é tudo por causa das meninas gémeas. Enfeitiçaram os nossos filhos e maridos. Como a fonte era segura, as mulheres acreditaram piamente na informação e assim foi convocada uma reunião de emergência entre as mulheres, afinal estava em jogo a paz em seus lares. Depois de um tenso e acirrado debate, o consenso.

- Uma das raparigas tem de morrer. Só assim a paz estará restabelecida. - Esse lugar é muito pequeno para duas raparigas daquele porte. Sentenciou a matriarca. Sem perder tempo as mulheres elaboraram um plano mirabolante para tirar a vida de uma das Moral, a Moral que elas achavam ser a mais ameaçadora.

Augusto Moral fora informado sobre a intenção malévola das mulheres do Vilarejo através da fonte mais segura que se podia encontrar aí, a tal senhora simplesmente não conseguia guardar segredo. Aterrorizado, Augusto Moral enfrentava o maior dilema da sua vida, fugir dali com as suas filhas para salvar o couro delas ou manter a sua palavra de só abandonar aquele lugar quando ensinar alguma moralidade e civismo àquele povo?

Embora qualquer terráqueo intuitiva ou instintivamente salvaria as filhas, Augusto Moral que nunca traía a sua moralidade preferiu manter a sua palavra. Ensinaria uma lição de moral àquele povo, mesmo que fosse a ultima coisa que fizesse em sua humilde mas grandiosa vida.

Os dias passaram até chegar o dia D.

Bateram a porta de casa de Augusto em meio a madrugada, quando este abriu a porta viu uma multidão formada apenas por mulheres que seguravam tochas por causa da noite negra.

De um lado, mulheres enfurecidas com os olhos ardendo feito as tochas em suas mãos, de outro lado, um pai e duas filhas completamente amedrontados mas que simulavam bravura. Em passos frios, a matriarca andou até Augusto Moral e disse-lhe em segredo, sussurrando-lhe no ouvido o nome da Moral que elas haviam decidido tirar a vida. Aquilo foi como se Augusto levasse um tiro a queima-roupa, seria assim de qualquer jeito não importa qual Moral fosse a escolhida, ele amava as duas Moral de igual modo.

- Vamos, dá-ma. Disse a matriarca com voz trovejante fazendo Augusto Moral estremecer. Segurando as filhas em cada uma das suas mãos, Augusto andou até o centro da rua.

- Venha busca-la. Vociferou Augusto destemido. As gémeas ficaram escandalizadas, estaria o seu pai a ceder? O que elas não sabiam era que Augusto estava certo que entre todas aquelas mulheres não existia uma que conseguia distinguir as meninas Moral, seria necessário um homem seja jovem ou velho para poder distinguir uma Moral da outra, mas não havia um por perto.

As mulheres deram-se conta do impasse, afinal qual das Moral era a Moral que elas queriam tirar a vida? Por instantes Augusto pensara que fizera as mulheres voltarem na ideia de matar uma das suas filhas, por instantes mesmo Augusto pensara que ensinara uma lição de moral àquelas mulheres, uma lição que ensinava-lhes a viver num mundo de diversidades, igualdades, aceitações, e respeito pela opinião e gostos alheios, por instantes Augusto pensara que salvara o mundo e as suas filhas ao mesmo tempo, por instantes Augusto sentia-se um herói, até este instante terminar, e dar lugar ao outro instante em que saiu uma pedra daquela multidão e acertar na Moral que estava na sua esquerda, a pedra acertou em cheio na cabeça da tal sua filha.

Augusto não podia acreditar que uma mulher naquela multidão movida pela incerteza decidiu apostar na aleatoriedade para resolver um problema, o que ela pensa que isso é? Um jogo? Não seria a incerteza motivo suficiente para não jogar a pedra, para não julgar, para não sentenciar alguém, por quê? As perguntas rolavam na mente de Augusto, como as lagrimas que rolavam no seu rosto incrédulo. Uma das suas Moral morria aos poucos nos seus braços, e ele nada podia fazer. As mulheres dispersaram indiferentes, com o sentimento que haviam feito o que devia ser feito em prol da restauração da paz entre as gerações no vilarejo.

Enquanto a sua filha morria nos seus braços, Augusto, pensava numa única coisa, vingança. E vingou-se. Com todas as forças que ainda lhe restavam, Augusto Moral, amaldiçoou aquela aldeia e o resto do mundo com uma maldição que mudou completamente o ADN dos homens porque está-nos na pele agora. De pés juntos, ele, jurou pelo sangue nas suas mãos, que nunca mais duas gerações partilhariam da mesma opinião, nunca mais jovens e velhos sentariam a volta de uma fogueira sem que não houvesse divergências, a menos que o mundo descobrisse qual das Moral sangrava nos braços. Augusto enterrou a Moral morta e sumiu da face da terra com a Moral que havia sobrevivido.

A maldição pegou e tem perdurado, arrastando consigo a sua história que vem sendo contada de geração a geração. Conta-se que anos depois de a maldição ser lançada, as mulheres do vilarejo tentaram várias vezes quebrar a maldição adivinhando o nome da Moral morta naquela fatídica noite, mas a duvida as corroía. Completamente frustradas, as mulheres passaram então a procurar a Moral que estava em vida. Era o único jeito de saber ao certo qual das Moral era Moral da história. Infelizmente todas as buscas foram em vão.

Até hoje as pessoas continuam a procura da Moral da história. A lenda continuará a ser contada, a maldição perdurará, até que um dia jovens e velhos deixem de lado as diferenças, unam-se e descubram juntos a resposta da pergunta que vem sendo feita há muito muito tempo. Afinal, qual é a Moral da história?

Opinião de
Cláudio Alexandre

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