Fale-me um pouco de si... Onde nasceu, cresceu, onde se formou...
Nasci em N'Dalatando, cresci em Luanda e a minha formação começou num período de transição e profunda transformação política e social, no liceu Mutu Ya Kevela que, nesses anos da independência, se tornou num micro cosmos multicultural, com alunos e professores que chegavam de toda a parte de Angola e do mundo. Formei-me em engenharia de electrónica e sistemas computacionais, no Instituto Superior de Engenharia de Lisboa, enquanto estudava música na Academia dos Amadores de Música em Lisboa, e mais recentemente fiz o Mestrado em Tecnologia da Música e Organologia Digital, na Universidade Metropolitana de Londres.
Como surgiu a paixão pelo mundo musical?
Foi surgindo desde muito cedo, mas foi mais decisivo quando, aos seis anos, tive o primeiro contacto com um instrumento musical e um músico, tocando-o ao vivo, o que ocorreu numa praia de Luanda. O músico em questão, era um pescador que tocava Ungu, o percursor do Berimbau. Seguia-o pela praia para ouvi-lo tocar... O primeiro instrumento que construí, foi motivado por esse pescador/músico. Queria tocar qualquer coisa, não tinha um instrumento em casa, tal como acontece com a maioria das crianças. Inventei um que era composto por uma corda de nylon, uma régua e uma caixa de lata.
Outro dos factores, que me despertou um grande fascínio pelo som e pela música, foi a estática entre emissoras que ouvia num rádio a válvulas. Em Angola, nos anos 60, conseguia apanhar emissoras internacionais a emitir em onda curta, e a estática estava cheia de vozes. Conheci desde muito cedo músicas e vozes do Irão, do Paquistão, da Índia, do Japão, das Américas, etc. Essa foi a minha primeira escola de música, ouvindo os sons do resto do planeta.
Já desenvolveu diversos projectos, como o Pangeia Instrumentos e o Tsikaya... Quer falar-me um pouco sobre eles?
Pangeia Instrumentos é uma série de instrumentos musicais contemporâneos, dispositivos sonoros e instalações acústicas, desenhados e construídos através de um processo de experimentação, que se cruza com o design, som, música, imagem e performance. A vocação destes instrumentos é a de criar e executar nova música, com um objecto físico, capaz de emergir tanto de um domínio virtual, digital, como de um domínio físico, analógico. O projecto surge de uma pesquisa sobre o fenómeno de metamorfose, dos instrumentos musicais, desde a sua origem na pré-história, até aos dias de hoje, e tem como base de inspiração os instrumentos tradicionais angolanos, como o kissange e o ungu. Este fenómeno, sugere que o design e a construção do instrumento são elementos dinâmicos, no processo de composição, e podem ser considerados parceiros de igual relevância na escrita musical.
O projecto Tsikaya é um projecto de investigação, e uma plataforma online, da música e músicos que vivem e desenvolvem o seu trabalho no interior de Angola, e em particular no meio rural. É um projecto que actua nas zonas de silêncio, regiões onde, apesar dos meios de comunicação e tecnologias existentes, ainda não é possível para os músicos e compositores distribuírem e promoverem a sua música, permitindo a uma audiência global, conhecer a diversidade e valor dessa música e património, que desenvolvem. Ao longo dos quase 20 anos que o projecto tem, da experiência adquirida no terreno, de parcerias locais, e dos inúmeros contactos com músicos, autoridades locais, activistas culturais, e das pessoas em geral que tenho conhecido, no interior de Angola, vejo agora um novo potencial para esta plataforma digital. O de transformar-se numa ferramenta de análise comparativa, que permita tirar algumas conclusões, sobre a evolução do património musical, do interior do país. Os arquivos de Ulrich Martini e da Diamang, vieram incentivar a ideia de integrar em Tsikaya, mais amostras de arquivos que tenham sido feitos por musicólogos, nacionais e estrangeiros, em Angola. Tsikaya tem dois discos gravados, e grande parte do seu arquivo de música, imagens e vídeos, pode ser visitado em www.tsikaya.org
Relativamente a outros projectos, quer destacar mais algum?
Destaco a série “Música para Rios” que se iniciou com “Rio Cunene”, uma peça escrita para o quarteto de cordas norte-americano Kronos Quartet, e estreada em 2010 no Carnegie Hall em Nova Iorque, e mais tarde em Lisboa. “Rio Cubango” estreou no ano seguinte no Concertgebow em Amesterdão, através de uma encomenda da Prince Claus Fund, e resultou de uma colaboração com o projecto Makakata Exchange, da produtora e artista sul africana Julia Reynham.
“Vela 6911”, escrita para vários dos meus instrumentos, e um octeto de cordas, fagote e percussão, estreou em Chicago sob encomenda da Chicago Symphony Orchestra, e foi o culminar do projecto “Tectonik: Tombwa”, com uma extensa investigação no deserto do Namibe, Western Cape e Antárctida.
O último projecto que realizei, a ópera multimédia “3 mil Rios: Vozes na Floresta” estreou em Maio passado, na Fundação Gulbenkian em Lisboa. Durante quatro anos viajei pela Amazónia, sobretudo do lado colombiano, para perceber os impactos ambientais e sociais que a actual vaga de industrialização está a ter nas florestas tropicais, e colaborei com comunidades locais e organizações ambientalistas. O resultado dessa investigação foi apresentado com a Orquestra Gulbenkian, e as sopranos Yetzabel Arias Fernandes, Betty Garcês e Té Macedo, os cantores tradicionais Waira Nina Jacanamijoy e Jaime Kiriyateke, das comunidades Inga e Muira-Muina. Em 2017 espero apresentar “3 mil Rios” em Bogotá e na Amazónia.
Os instrumentos que cria são sem dúvida deslumbrantes. Onde se inspira para criar algo tão mágico?
O ponto de partida foram os instrumentos tradicionais angolanos, que comecei a estudar e a tocar quando era ainda adolescente, sobretudo o kissange, mas hoje procuro que a criação de novos instrumentos musicais seja um processo contínuo, e integrado num processo de composição. Acredito que a música contemporânea pode projectar-se para além das estruturas da tradição, mas com um dos seus alicerces nesta.
Qual foi o instrumento que mais gostou de criar?
Um instrumento musical é um objecto muito complexo, que não termina no processo da sua criação. Há um caminho de evolução a percorrer que exige tempo, recursos e muita experimentação. Ao longo dos últimos 16 anos, tenho-me dedicado sobretudo a três instrumentos, o acrux, a toha e o dino, que terão em breve mais uma nova versão, provavelmente a sexta, desde que foram criados. São os instrumentos que uso mais nas apresentações ao vivo, e que me permitem manter, ao longo de um concerto, uma boa diversidade da sonoridade e da música que desenvolvo para eles.
As suas exposições e instalações são espaços diferentes, onde os visitantes além de ver e ouvir podem tocar instrumentos. Pode falar-me sobre este conceito?
A exposição “Instrmnts”, funciona como um espaço de performance e experimentação livre para o público, onde também participa em actividades como concertos, workshops, jogos e palestras. Ao percorrerem trajectos sugeridos no interior do espaço de exposição, tocando nos instrumentos expostos, os visitantes têm uma oportunidade de experimentar um processo criativo onde o som, a música, o design e a performance, estão em primeiro plano. A exposição inclui uma série de mais de 40 instrumentos contemporâneos, de desenho original, incluindo instalações e audiovisuais. Este conceito, permite que as pessoas não só disfrutem da música que se faz para estes instrumentos, mas também tenham uma experiência do que é tocar um instrumento, e de todo o processo criativo de composição musical.
No que respeita ao seu trabalho, de tudo o que fez até hoje, o que lhe deu mais satisfação em fazer e porquê?
Dois projectos. Escrever a peça “Rio Cunene” para o quarteto de cordas Kronos Quartet, que referi anteriormente, envolvendo os meus instrumentos e instrumentos construídos por crianças do Xangongo, no Cunene, com quem trabalhei em 2009. Tive a oportunidade de ensaiar com os Kronos na sua base de São Francisco, e perceber como funcionam e o que os leva girar pelo mundo.
A tourné “Berimbau-Ungu” por Angola, Moçambique e África do Sul, com os percussionistas Naná Vasconcelos, Kituxi e Inô, da qual resultou o documentário “Guardians of the Bow”. Trabalhar e partilhar o mesmo palco com o Naná Vasconselos, que tinha sido um dos meus mestres durante décadas, nunca me tinha ocorrido vir a ser uma realidade.
O seu trabalho tem chamado a atenção e, como resultado, tem tido encomendas por parte de instituições de prestígio mundial, o que claramente revela o seu sucesso. Qual o feedback, por parte dos angolanos, do seu trabalho? E dos estrangeiros?
O último feedback que tive em Angola ocorreu durante o Fenacult 2014, e revelou bastante interesse por parte das pessoas que estão envolvidas com a cultura, tanto a nível artístico e do público em geral, como a nível das instituições, e das muitas crianças e jovens que visitaram e participaram na exposição “Instrmnts”, instalada no Museu Nacional de Antropologia, em Luanda, onde participaram das inúmeras oficinas que realizámos. No estrangeiro, as reacções vêm-me da apresentação dessas encomendas, e das exposições que se vão realizando, um pouco por vários países. Todos os feedbacks têm uma componente crítica, o que é muito útil na aferição e avaliação do trabalho.
Em todo o seu trabalho, e em todos os projectos que esteve ou está envolvido, qual foi a melhor experiência que teve até agora? E a mais difícil?
Criar a música para o recente filme “Independência”, da Associação Tchiweka de Documentação, com realização de Mário Bastos e produção da Geração 80, foi um projecto muito especial porque me transportou a uma época que vivi com muita intensidade, entusiasmo e de muitas descobertas. Por outro lado, permitiu-me conhecer mais profundamente todo o processo que levou à independência de Angola.
A experiência de “3 mil Rios” na Amazónia colombiana foi um grande desafio, pois envolveu uma pesquisa muito longa, e muitas vezes em territórios de conflito, incluindo a entrada em zonas controladas por grupos guerrilheiros e paramilitares, muitas travessias de rios e alguns incidentes no limite do desastre. Mas o contacto com as pessoas de comunidades que vivem essas realidades diariamente, e o companheirismo com os colegas de projecto na Colômbia, foi uma grande aprendizagem e algo que nunca esquecerei.
Quais foram os maiores obstáculos que passou, ou que passa, no seu trabalho artístico?
Há sempre obstáculos a transpor e que no dia-a-dia exigem muita perseverança, dedicação a tempo inteiro, e muito trabalho de produção, administração, procura de novas parcerias, contactos permanentes com uma rede de trabalho, que deve em princípio ir alargando-se. Os maiores deles todos são para esquecer.
Já foi premiado pelo seu trabalho? Se não foi, gostaria de ver reconhecido o seu talento? Qual é o prémio que mais ambiciona?
Nunca recebi prémios, mas também não creio que um artista ou compositor esteja à espera de um prémio, para ver reconhecido o seu trabalho. Na minha área, os prémios são os convites para criar novas peças, poder circular e apresentar o meu trabalho nos centros, instituições e salas por onde já passei, e as pessoas e artistas com quem tive o prazer de trabalhar.
Tem projectos para o futuro?
Há uma nova peça a estrear no Kennedy Center, em Washington, em Fevereiro de 2017, escrita para acrux, marimba e quarteto de cordas, uma instalação de som para a exposição de uma artista alemã, que vive em Luanda, e uma peça para acrux em quatro andamentos, para um projecto apoiado por entidades académicas, e que deverá estar online em Setembro.