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Victor Gama: “Na minha área os prémios são os convites para criar novas peças e apresentar o meu trabalho”

Músico, compositor e criador de instrumentos contemporâneos. Victor Gama nasceu em Angola, e a paixão pelo som e pela música acompanhou-o desde sempre. Foi ainda em criança que construiu o seu primeiro instrumento musical. Já desenvolveu vários projectos e exposições, como a exposição “Instrmnts”, na qual os visitantes têm uma experiência diferente, pois podem ver, ouvir e tocar os mais de 40 instrumentos expostos. O angolano que constrói música, admite que é necessária muita perseverança e dedicação, para ultrapassar os obstáculos que vão surgindo, e realça que um instrumento musical “é um objecto muito complexo, que não termina no processo da sua criação”, pois há ainda todo um percurso de desenvolvimento do instrumento “que exige tempo, recursos e muita experimentação”.

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Fale-me um pouco de si... Onde nasceu, cresceu, onde se formou...

Nasci em N'Dalatando, cresci em Luanda e a minha formação começou num período de transição e profunda transformação política e social, no liceu Mutu Ya Kevela que, nesses anos da independência, se tornou num micro cosmos multicultural, com alunos e professores que chegavam de toda a parte de Angola e do mundo. Formei-me em engenharia de electrónica e sistemas computacionais, no Instituto Superior de Engenharia de Lisboa, enquanto estudava música na Academia dos Amadores de Música em Lisboa, e mais recentemente fiz o Mestrado em Tecnologia da Música e Organologia Digital, na Universidade Metropolitana de Londres.

Como surgiu a paixão pelo mundo musical?

Foi surgindo desde muito cedo, mas foi mais decisivo quando, aos seis anos, tive o primeiro contacto com um instrumento musical e um músico, tocando-o ao vivo, o que ocorreu numa praia de Luanda. O músico em questão, era um pescador que tocava Ungu, o percursor do Berimbau. Seguia-o pela praia para ouvi-lo tocar... O primeiro instrumento que construí, foi motivado por esse pescador/músico. Queria tocar qualquer coisa, não tinha um instrumento em casa, tal como acontece com a maioria das crianças. Inventei um que era composto por uma corda de nylon, uma régua e uma caixa de lata.

Outro dos factores, que me despertou um grande fascínio pelo som e pela música, foi a estática entre emissoras que ouvia num rádio a válvulas. Em Angola, nos anos 60, conseguia apanhar emissoras internacionais a emitir em onda curta, e a estática estava cheia de vozes. Conheci desde muito cedo músicas e vozes do Irão, do Paquistão, da Índia, do Japão, das Américas, etc. Essa foi a minha primeira escola de música, ouvindo os sons do resto do planeta.

Já desenvolveu diversos projectos, como o Pangeia Instrumentos e o Tsikaya... Quer falar-me um pouco sobre eles?

Pangeia Instrumentos é uma série de instrumentos musicais contemporâneos, dispositivos sonoros e instalações acústicas, desenhados e construídos através de um processo de experimentação, que se cruza com o design, som, música, imagem e performance. A vocação destes instrumentos é a de criar e executar nova música, com um objecto físico, capaz de emergir tanto de um domínio virtual, digital, como de um domínio físico, analógico. O projecto surge de uma pesquisa sobre o fenómeno de metamorfose, dos instrumentos musicais, desde a sua origem na pré-história, até aos dias de hoje, e tem como base de inspiração os instrumentos tradicionais angolanos, como o kissange e o ungu. Este fenómeno, sugere que o design e a construção do instrumento são elementos dinâmicos, no processo de composição, e podem ser considerados parceiros de igual relevância na escrita musical.

O projecto Tsikaya é um projecto de investigação, e uma plataforma online, da música e músicos que vivem e desenvolvem o seu trabalho no interior de Angola, e em particular no meio rural. É um projecto que actua nas zonas de silêncio, regiões onde, apesar dos meios de comunicação e tecnologias existentes, ainda não é possível para os músicos e compositores distribuírem e promoverem a sua música, permitindo a uma audiência global, conhecer a diversidade e valor dessa música e património, que desenvolvem. Ao longo dos quase 20 anos que o projecto tem, da experiência adquirida no terreno, de parcerias locais, e dos inúmeros contactos com músicos, autoridades locais, activistas culturais, e das pessoas em geral que tenho conhecido, no interior de Angola, vejo agora um novo potencial para esta plataforma digital. O de transformar-se numa ferramenta de análise comparativa, que permita tirar algumas conclusões, sobre a evolução do património musical, do interior do país. Os arquivos de Ulrich Martini e da Diamang, vieram incentivar a ideia de integrar em Tsikaya, mais amostras de arquivos que tenham sido feitos por musicólogos, nacionais e estrangeiros, em Angola. Tsikaya tem dois discos gravados, e grande parte do seu arquivo de música, imagens e vídeos, pode ser visitado em www.tsikaya.org

Relativamente a outros projectos, quer destacar mais algum?

Destaco a série “Música para Rios” que se iniciou com “Rio Cunene”, uma peça escrita para o quarteto de cordas norte-americano Kronos Quartet, e estreada em 2010 no Carnegie Hall em Nova Iorque, e mais tarde em Lisboa. “Rio Cubango” estreou no ano seguinte no Concertgebow em Amesterdão, através de uma encomenda da Prince Claus Fund, e resultou de uma colaboração com o projecto Makakata Exchange, da produtora e artista sul africana Julia Reynham.

“Vela 6911”, escrita para vários dos meus instrumentos, e um octeto de cordas, fagote e percussão, estreou em Chicago sob encomenda da Chicago Symphony Orchestra, e foi o culminar do projecto “Tectonik: Tombwa”, com uma extensa investigação no deserto do Namibe, Western Cape e Antárctida.

O último projecto que realizei, a ópera multimédia “3 mil Rios: Vozes na Floresta” estreou em Maio passado, na Fundação Gulbenkian em Lisboa. Durante quatro anos viajei pela Amazónia, sobretudo do lado colombiano, para perceber os impactos ambientais e sociais que a actual vaga de industrialização está a ter nas florestas tropicais, e colaborei com comunidades locais e organizações ambientalistas. O resultado dessa investigação foi apresentado com a Orquestra Gulbenkian, e as sopranos Yetzabel Arias Fernandes, Betty Garcês e Té Macedo, os cantores tradicionais Waira Nina Jacanamijoy e Jaime Kiriyateke, das comunidades Inga e Muira-Muina. Em 2017 espero apresentar “3 mil Rios” em Bogotá e na Amazónia.

Os instrumentos que cria são sem dúvida deslumbrantes. Onde se inspira para criar algo tão mágico?

O ponto de partida foram os instrumentos tradicionais angolanos, que comecei a estudar e a tocar quando era ainda adolescente, sobretudo o kissange, mas hoje procuro que a criação de novos instrumentos musicais seja um processo contínuo, e integrado num processo de composição. Acredito que a música contemporânea pode projectar-se para além das estruturas da tradição, mas com um dos seus alicerces nesta.

Qual foi o instrumento que mais gostou de criar?

Um instrumento musical é um objecto muito complexo, que não termina no processo da sua criação. Há um caminho de evolução a percorrer que exige tempo, recursos e muita experimentação. Ao longo dos últimos 16 anos, tenho-me dedicado sobretudo a três instrumentos, o acrux, a toha e o dino, que terão em breve mais uma nova versão, provavelmente a sexta, desde que foram criados. São os instrumentos que uso mais nas apresentações ao vivo, e que me permitem manter, ao longo de um concerto, uma boa diversidade da sonoridade e da música que desenvolvo para eles.

As suas exposições e instalações são espaços diferentes, onde os visitantes além de ver e ouvir podem tocar instrumentos. Pode falar-me sobre este conceito?

A exposição “Instrmnts”, funciona como um espaço de performance e experimentação livre para o público, onde também participa em actividades como concertos, workshops, jogos e palestras. Ao percorrerem trajectos sugeridos no interior do espaço de exposição, tocando nos instrumentos expostos, os visitantes têm uma oportunidade de experimentar um processo criativo onde o som, a música, o design e a performance, estão em primeiro plano. A exposição inclui uma série de mais de 40 instrumentos contemporâneos, de desenho original, incluindo instalações e audiovisuais. Este conceito, permite que as pessoas não só disfrutem da música que se faz para estes instrumentos, mas também tenham uma experiência do que é tocar um instrumento, e de todo o processo criativo de composição musical.

No que respeita ao seu trabalho, de tudo o que fez até hoje, o que lhe deu mais satisfação em fazer e porquê?

Dois projectos. Escrever a peça “Rio Cunene” para o quarteto de cordas Kronos Quartet, que referi anteriormente, envolvendo os meus instrumentos e instrumentos construídos por crianças do Xangongo, no Cunene, com quem trabalhei em 2009. Tive a oportunidade de ensaiar com os Kronos na sua base de São Francisco, e perceber como funcionam e o que os leva girar pelo mundo.

A tourné “Berimbau-Ungu” por Angola, Moçambique e África do Sul, com os percussionistas Naná Vasconcelos, Kituxi e Inô, da qual resultou o documentário “Guardians of the Bow”. Trabalhar e partilhar o mesmo palco com o Naná Vasconselos, que tinha sido um dos meus mestres durante décadas, nunca me tinha ocorrido vir a ser uma realidade.

O seu trabalho tem chamado a atenção e, como resultado, tem tido encomendas por parte de instituições de prestígio mundial, o que claramente revela o seu sucesso. Qual o feedback, por parte dos angolanos, do seu trabalho? E dos estrangeiros?

O último feedback que tive em Angola ocorreu durante o Fenacult 2014, e revelou bastante interesse por parte das pessoas que estão envolvidas com a cultura, tanto a nível artístico e do público em geral, como a nível das instituições, e das muitas crianças e jovens que visitaram e participaram na exposição “Instrmnts”, instalada no Museu Nacional de Antropologia, em Luanda, onde participaram das inúmeras oficinas que realizámos. No estrangeiro, as reacções vêm-me da apresentação dessas encomendas, e das exposições que se vão realizando, um pouco por vários países. Todos os feedbacks têm uma componente crítica, o que é muito útil na aferição e avaliação do trabalho.

Em todo o seu trabalho, e em todos os projectos que esteve ou está envolvido, qual foi a melhor experiência que teve até agora? E a mais difícil?

Criar a música para o recente filme “Independência”, da Associação Tchiweka de Documentação, com realização de Mário Bastos e produção da Geração 80, foi um projecto muito especial porque me transportou a uma época que vivi com muita intensidade, entusiasmo e de muitas descobertas. Por outro lado, permitiu-me conhecer mais profundamente todo o processo que levou à independência de Angola.

A experiência de “3 mil Rios” na Amazónia colombiana foi um grande desafio, pois envolveu uma pesquisa muito longa, e muitas vezes em territórios de conflito, incluindo a entrada em zonas controladas por grupos guerrilheiros e paramilitares, muitas travessias de rios e alguns incidentes no limite do desastre. Mas o contacto com as pessoas de comunidades que vivem essas realidades diariamente, e o companheirismo com os colegas de projecto na Colômbia, foi uma grande aprendizagem e algo que nunca esquecerei.

Quais foram os maiores obstáculos que passou, ou que passa, no seu trabalho artístico?

Há sempre obstáculos a transpor e que no dia-a-dia exigem muita perseverança, dedicação a tempo inteiro, e muito trabalho de produção, administração, procura de novas parcerias, contactos permanentes com uma rede de trabalho, que deve em princípio ir alargando-se. Os maiores deles todos são para esquecer.

Já foi premiado pelo seu trabalho? Se não foi, gostaria de ver reconhecido o seu talento? Qual é o prémio que mais ambiciona?

Nunca recebi prémios, mas também não creio que um artista ou compositor esteja à espera de um prémio, para ver reconhecido o seu trabalho. Na minha área, os prémios são os convites para criar novas peças, poder circular e apresentar o meu trabalho nos centros, instituições e salas por onde já passei, e as pessoas e artistas com quem tive o prazer de trabalhar.

Tem projectos para o futuro?

Há uma nova peça a estrear no Kennedy Center, em Washington, em Fevereiro de 2017, escrita para acrux, marimba e quarteto de cordas, uma instalação de som para a exposição de uma artista alemã, que vive em Luanda, e uma peça para acrux em quatro andamentos, para um projecto apoiado por entidades académicas, e que deverá estar online em Setembro.

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