"A guerra não engrandece os homens, ela destrói-os e muito presunçoso é aquele que dela tira glória ou proveito, já que o eco dos mortos ressoará sempre no balançar da sua memória", escreveu, no preâmbulo do livro, o fotojornalista de 46 anos, num texto que começa com a frase "Exercício difícil este da memória, por vezes doloroso".
Vinte anos depois de ter tirado as fotografias, reunidas num livro com textos introdutórios em francês, inglês e português, Jean-Charles Gutner contou à Lusa algumas memórias da guerra, as dificuldades que enfrentou para fazer o seu trabalho e o desejo que as imagens possam chegar a Angola, onde ainda não encontrou distribuidor para a obra.
"Eu não sei se Angola está interessada em falar novamente da história. Achei interessante que a nova geração tivesse oportunidade de ver a história contemporânea de Angola, ver pelo que passou o país e onde está agora. Claro que há muito a melhorar mas já passou por muito. Achei importante dar a oportunidade às pessoas de se lembrarem do que era a realidade no país há 20 anos. Vinte anos é uma geração", afirmou.
Depois de uma temporada na Argélia, entre 1992 e 1993, onde "era complicado trabalhar" durante a vaga islamita do Grupo Islâmico Armado, Jean-Charles Gutner decidiu ir para Angola, "em contrapé da história" porque a imprensa internacional estava com os olhos virados para o confronto na ex-Jugoslávia.
Chegou a Angola em 1993 e aí ficou até 1995, onde cobriu a guerra civil para a Agência France-Presse e para a Associated Press.
"Não foi nada fácil porque Angola era um país comunista e havia uma desconfiança em relação a jornalistas estrangeiros. Fiquei quase três meses a trabalhar em redor de Luanda antes de ter a primeira credencial militar para me deslocar para a zona de confronto. Por isso, o confronto angolano não se tornou muito documentado porque a zona de combate era muito distante da capital", contou o fotojornalista.
Depois de ultrapassado o filtro da segurança militar com uma credencial do Estado, o francês cobriu o conflito essencialmente do lado do MPLA, mas também teve a oportunidade de estar com soldados da UNITA, tendo várias vezes escapado à morte porque "um branco com 1,86 metros, no meio da selva, com soldados africanos, é logo o primeiro alvo".
Gutner chegou a Angola com 22 anos, depois de ter estado noutras guerras, primeiro na Roménia, em 1990, depois no Iraque, em 1991, e na Argélia, entre 1992 e 1993, apontando que "a guerra não é um jogo de criança" e que "tortura e morte são o dia-a-dia de um correspondente de guerra".
"Em zonas de conflito, você está confrontado com a morte, até com a sua própria morte, em permanência. O que mais vi foi carnificina, mas mais do lado da UNITA. Civis mutilados, zonas de interrogatório. Eu testemunhei isso em Longonjo, onde simpatizantes do Governo foram executados antes da retirada e também no Soyo, onde havia um campo de limpeza", recordou.
Essa "realidade do correspondente de guerra" perpetuou "algumas" imagens que ainda hoje o perseguem, mas o repórter aprendeu a "viver com o passado e a readaptar-se à realidade", ainda que tenha deixado para trás a reportagem de guerra, sem abandonar o fotojornalismo.
No livro, há imagens a cores e outras a preto e branco - "uma forma mais íntima de testemunhar a realidade" - com a morte a ser ilustrada, na maior parte das vezes, de forma indirecta com, por exemplo, um enquadramento fotográfico a privilegiar um caixão e a esconder a maioria dos rostos que assistem ao enterro, mas também há fotografias cruas a mostrar corpos de soldados no chão, sem vida.
Há, também, vários retratos individuais de militares, incluindo de crianças-soldado, a posarem para a fotografia e a exibirem as suas armas.
No livro, vê-se ainda um Jonas Savimbi a acenar para o fotógrafo, acompanhado pelo general Ben Ben, durante o VIII Congresso da UNITA no Bailundo, no Huambo, e uma imagem do desfile dos 20 anos da independência, com uma bandeira de Angola a tapar a multidão, de onde sobressai uma muleta, uma perna e outra amputada.