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Opinião Paleio Alheio

Repugnantes

Cláudio Alexandre

Cláudio Alexandre, contista, cronista, romancista e contabilista. Licenciado em Gestão de finanças, prefere contar palavras que números, por uma razão, as palavras são contáveis, os números não.

Fazia noventa e um dias que Zé da Silva não tomava banho, a fobia que Zé tinha da água, desenvolvida na infância, mais a estação de cacimbo que nesse ano estava duas vezes mais rigorosa que o normal, explicava a greve de banho de Zé da silva, o mendigo. Sua pele que outrora fora uma pele como outra qualquer agora estava revestida de uma crosta solida constituída de sujidade. O odor nas axilas de Zé era simples de reconhecer, era catinga pura, na sua mais simples forma. Quem passasse perto de Zé numa tarde de sol escaldante sentia a essência do mal cheiro nas suas narinas, cheiro em extinção em épocas de desodorantes e perfumes.

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Na zona púbica, Zé tinha outro cheiro, algo pútrido, lembrava a carne esquecida em um frigorífico que não é ligado há meses, mas esse cheiro era só para Zé, e ele apenas o sentia quando levava as mãos dentro das calças para o salvar daquela coceira que pouco a pouco ficava constante, seria sarna? Provavelmente. As mãos saíam de dentro das calças fétidas, mas como Zé não lavava as mãos por esquecimento ou por pura neglicência, eram com aquelas mesmas mãos que Zé comia o seu pão duro e seco todos os dias. O pão vinha do lixo da padaria que ficava próximo da esquina de onde Zé ficava. Quando este descobriu essa mina de ouro, decidiu não complicar a sua dieta, desde então tem sido pão duro todos os dias e noites. Por culpa da sua preguiça em procurar outros alimentos para adicionar à sua dieta, os intestinos de Zé têm pagado caro, o congestionamento nos intestinos dele lembra as estradas de Luanda na hora de ponta. E Por causa da prisão de ventre, Zé solta gases a cada três minutos, o cheiro dos seus gases parece o cheiro de enxofre apodrecido. Este é o terceiro cheiro de Zé.

Era o nono cliente de Maria naquele dia, mal o cliente veio-se, Maria limpou seu órgão genital com uma toalha encardida e já estava pronta para o décimo. Eram só onze horas. Por dia Maria recebia vinte clientes, e ainda sobrava tempo para mais, contudo ela contentava-se com vinte que eram suficientes para cobrir as contas. Em seus dias de glória, isso no início da carreira, bastava um cliente para fazer o dia de Maria. Nessa altura, o seu corpo era jovem e esbelto, o que a tornava na prostituta mais badalada dos arredores. Todos os dias Maria era exclusiva para apenas um cliente, e essa exclusividade tinha um preço alto. Assim foi até ouvirem-se rumores que Maria havia contraído uma DST, aos poucos os clientes ricos desapareceram, e Maria teve que baixar a fasquia, e foi baixando a fasquia até fixar a fasquia em uma linha em que seus clientes faziam parte da classe abaixo da linha de pobreza. Hoje Maria dá-se por satisfeita quando atende um raboteiro, pelo menos não é um capuqueiro, clientes de praxe, que de nada reparam no corpo todo lixado de Maria, usam-na apenas para apressados orgasmos, Maria sabe disso, sabe que é tão insignificante para seus clientes, quanto as mãos de um adolescente que acaba de descobrir a punheta. Como seus clientes não são lá muito cultos, preservativo lhes soa á um termo esotérico, por isso Maria desistiu de lhes tentar ensinar a usar um, e ficou mesmo pelo trigo-limpo, o famoso carne na carne, e assim Maria se tornou num reservatório de DSTs. É tanta doença junta que ela admira-se de ainda estar viva.

Zé sempre foi um mendigo, mas nunca na sua vida fora um pedinte. Recusava em ser o mendigo comum que desperta a pena nas pessoas, ainda assim era muitas vezes confundido com um pedinte por causa da sua aparência. Ele ficava puto da vida sempre que alguém lhe atirava restos de sanduiches, ou quando lhe atiravam alguns centavos, por acaso estavam a ver uma mão estendida? Perguntava-se. A abordagem era diferente quando alguém atirasse uma nota de quinhentos Kwanzas, ou uma nota maior, isso sim era solidariedade e Zé recebia de bom grado. Calhou que um pedestre bom samaritano atirou-lhe uma nota de mil Kwanzas. O pedestre provavelmente pensou que a sua contribuição ajudaria aquele mendigo podre com algo para comer durante alguns dias, mas Zé tinha outros planos para aquele dinheiro já que sua alimentação estava assegurada com o pão duro do dia-a-dia, e graças a esse pão, Zé raramente sentia fome pois a prisão de ventre dava-lhe a sensação de estar cheio, e estava claro, embora era o acumulo de fezes endurecidas nos intestinos.

Fazer amor é uma necessidade biológica tão necessária quanto comer, e Zé ainda que apodrecendo não estava escusado, aliás ele não sentia-se escusado, sentia que merecia fazer amor tal outros seres viventes, mas como a sua condição de podre nunca era um chamariz para atrair fêmeas, Zé decidiu fazer amor pagando, e com aquela nota de mil kwanzas, Zé ouvira falar de sítios que era suficiente para duas lingas até.

Não era cansaço físico o que Maria sentia toda vez que despachava um cliente, era cansaço psicológico, o pior, Maria tinha uma vontade imensa de descansar em paz, morrer, e mesmo depois de se expor a todo tipo de doenças, a vida insistia nela. Mesmo com os ardores nos órgãos genitais, as febres e suores noturnos, a inflamação acolá, aquela infeção e outras dores, o corpo debilitado de Maria ainda tinha o sopro da vida, e um estranho vigor suficiente para aguentar cinco, dez, quinze, vinte homens por dia, parecia milagre, e por isso ela acreditava que talvez algo bom poderia acontecer na sua vida. Ninguém vive tudo o que ela vivia para morrer na estação próxima da felicidade. Resistia em acreditar que sua vida se resumiria em ser puta, mulher da vida, ou sabe-se lá o que mais é chamada a profissional do sexo. Ela acreditava que todas as vidas têm um propósito, seria o propósito da vida dela servir de recurso para orgasmos de homens, ainda por cima homens da pior espécie, que não sabiam apreciar uma mulher (um poço de doenças verdade seja dita) mas ainda era uma mulher, ainda era um ser humano necessitante de mutualidade, companheirismo, ou sabe-se lá o que as mulheres precisam para serem felizes, (amor talvez), que seja, até uma prostituta precisa ser amada, precisa de um homem ao seu lado, uma família, uma vida. Sonhos são para todos, até para prostitutas nojentas.

- Próximo! Maria gritou para que o décimo cliente entrasse, o nono cliente ainda estava ocupado a vestir as calças. Zé havia esperado pacientemente numa fila indiana tão cheia de gente repugnante, que ele era quase visto como gente normal. Zé nunca fora muito paciente mas esperou até a sua vez chegar, enfim seria recompensado pela sua paciência. Uma mulher profissional do sexo o esperava havia poucos metros. Enquanto esperava, imaginava uma prostituta com ares de princesa satisfazendo seus porcos fetiches sexuais. Sonhava com uma prostituta menor de idade. Parece que porquice de Zé era tão grande que ultrapassava a linha dos cheiros fedorentos e penetrava na sua moralidade.

- Próximo! Zé voltou a ouvir, para não perder a oportunidade entrou logo.

O quarto era um nojento cliché do cinema, o clássico prato com restos de comida enfestado de baratas, roupas sujas cobrindo o chão, ratos medrosos andando nos cantos, e uma prostituta cansada, coberta de suor, estendida numa cama que guinchava involuntariamente, ah, tinha também a ventoinha avariada próxima de uma janela que tinha os vidros sujos de poeira. Todo este cenário parecia ser uma tentativa forçada de imitar algum filme de Quentin Tarantino. Para Zé o quarto tinha um ar caseiro, a deceção era mesmo a prostituta, esperava muito mais, alias muito menos, uma menor, 16 anos, 15 talvez, ao invés encontrara uma puta já em fim de carreira. Azar. Mas a vida é como é, quem não tem cão, caça como o gato caça, no oportunismo.

Mendigos, os piores clientes, têm um cheiro típico, e nunca têm dinheiro suficiente, Maria pensou, embora nunca discriminava as pessoas pelo estatuto social, pois pensava que todos tinham alguma coisa para oferecer, e como seu negócio é orientado ao cliente, por causa do contato direto, Maria aceitava tudo que lhe aparecia, até mendigos a cheirar a podre. Zé começou a se desfazer do volume de roupas encardidas que colavam na sua derme fruto da catinga pegajenta, quanto mais roupa saía, mais mal cheirava no quarto, o ar ficava mesmo rarefeito. Maria fingia não sentir aquele cheiro sufocante. Era de praxe no seu ofício ser alvo de cheiros, o bafo agudo de bebidas mal destiladas dos capuqueiros, a catinga expressiva fruto do trabalho árduo dos raboteiros, e os cheiros inebriantes de mendigos grevistas de banho. Todos os dias era um festival de cheiros que a deixara muito bem treinada para aquele desafio na sua frente, Zé dos três cheiros. Quando o seu cliente se desfez da última peça de roupa no seu corpo, Maria já havia se ambientado com o cheiro, alias, com os cheiros, mas a grande surpresa foi a zona púbica de Zé, uma zona completamente gangrenada, uma assadura vermelha, húmida e exposta, carne podre mesmo, que faria qualquer pessoa com um mínimo de sofisticação literalmente morrer de nojo. Maria percebera então o grande desafio. Fazer sexo oral com aquele cliente que apodrecia vivo. Nunca havia experimentado carne podre, seria desta?

Destemida, Maria andou em passos de leoa até o seu cliente que pairava impassível perto da porta, chegando a ele agachou-se e encarou aquela podridão de perto, ainda assim o cliente exibia uma vigorosa ereção feito gente saudável. Ela sentia seu olfato a ser estuprado por aquele cheiro de podre, e sua visão vandalizada pela vista a sua frente. Fechou as vistas e ignorou os cheiros. Estava pronta pra chupar um pénis com sabor a merda, sentiu duas mãos no seu rosto, provavelmente as do seu cliente, vai ele me forçar? Maria pensou, e acertou, ele a forçou a levantar, o olfato e visão de Maria agradeceram. Ele a levantou até ficarem da mesma altura, olhos nos olhos, e o ar pútrido deu lugar a uma estranha tensão, qual seria a sua próxima jogada? Maria mal acabou de pensar e sentiu seus lábios tocarem outros lábios, era um beijo, um beijo agridoce, mau hálito misturado ao doce e singelo toque de lábios e línguas a tocarem-se em sintonia de orquestra. Enquanto beijava, Maria lembrou-se que fazia uma eternidade desde a última vez que um cliente a beijou, ah como beijar é bom, lembrou, abraçou Zé e deixou-se levar por aquele beijador de putas. Maria sentiu-se pressionada, teria de retribuir a altura, afinal não é qualquer um que beija uma prostituta com aquela dedicação toda, ignorando todas as coisas que ela levara a boca e até mesmo a herpes no canto da sua boca, não é qualquer um. Maria decidiu então entregar-se toda como nunca havia se entregado à cliente algum. Fizeram amor. Zé e Maria amaram-se tão apaixonadamente como poucos humanos alguma vez o fizeram. Ali nada mais importava se não satisfazerem-se. Tal eram ignorados todos os dias, eles também ignoraram o mundo naquele momento. Faziam-se sentir especial.

Uma união podre e doentia, onde ele trouxe a sarna gangrenosa, os seus três cheiros e outros males, enquanto ela trouxe as gonorreias, sífilis, herpes, e outras DSTs, e assim formaram um coquetel de doenças mortal para qualquer humano. Morreriam não tardaria, mas naquele momento eles viveram muito mais que nós todos juntos, porque ignoraram as imperfeições e decidiram amar-se, apenas.

Opinião de
Cláudio Alexandre

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