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Opinião Os 5 em Angola

Rotinas

Filipa Moita

Autora da página de Facebook Os 5 em Angola, que relata as experiências de uma família portuguesa de cinco elementos que imigrou para Angola.

Quando tomámos a decisão de vir para Angola, no início, a prioridade foi dada às meninas e à sua adaptação a uma escola e a um País novo, e só depois, demos atenção ao elemento mais novo da família. Dessa forma, e como ainda não trabalhava, decidi ficar em casa e dar apoio e suporte a todos. Quando constatámos de que estavam integradas, foi a vez do mais novo conhecer a sua escolinha, não tendo custado nada, quer para ele, quer para nós!

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Depois de todos plenamente integrados na nova rotina e com tudo a correr bem, decidi procurar trabalho, o qual encontrei, pouco tempo depois. E no princípio do ano, vi-me a incorporar uma empresa de consultoria de renome aqui em Luanda. Não deixa de ser irónico pois sempre disse que só havia espaço para um consultor em casa. Mas a vida dá muitas voltas e tenho de agradecer ter tido esta sorte.

E aqui noto muitas diferenças com a rotina de trabalho que tinha em Portugal. Para começar, levantamo-nos muito cedo, por volta das 05h30 e neste campo somos uns privilegiados pois há quem se levante às 04h30 para poder estar no emprego às 07h30 ou 08h00, pois poucos quilómetros fazem-se em muitas horas! É a diferença entre viver na cidade e viver nas periferias. Por isso, quando escolhemos as escolas dos meninos, tivemos em atenção o sítio para viver, pois de manhã, num trajecto de apenas três quilómetros pode levar-se uma hora a fazer ou mais, dependendo dos dias. Por isso, viver na cidade tem a vantagem de podermos dormir mais um pouco de manhã e demorarmos menos tempo a chegar ao trabalho, escolas e a casa à noite. Mas por outro lado, nunca se descansa pois a cidade nunca dorme, nunca se silencia, nunca se acalma.

E quando temos a infelicidade de sermos visitados por alguma individualidade estrangeira, podemos estar quatro ou cinco horas imobilizados no trânsito, como já aconteceu. E perguntam vocês como pode haver tanto trânsito em Luanda? O trânsito acontece porque os semáforos não estão a funcionar, as regras de trânsito não existem e o civismo na condução ainda não chegou a Angola. A juntar a isto tudo, temos quase todas as ruas esburacadas ou com crateras gigantescas que obrigam os carros a parar, a contornar os ditos e a transitar na faixa contrária, isto com peões constantemente a atravessar no meio do caótico, carrinhos de mão de transporte de mercadorias e vendedores de rua que se colocam no meio da estrada. Como eu costumo dizer, quem conduzir aqui em Angola, conduz em qualquer parte do mundo. Eu por enquanto, ainda só me satisfaço ao fim de semana mas sei que qualquer dia tenho de me iniciar na estrada. Talvez quando arranjar um jipe com rodas altas que passem por cima de tudo e mais alguma coisa!

Passado este stress do trânsito e chegada ao trabalho, é interessante ver as diferenças laborais daqui e comparar com outras. Como há funcionários que chegam muito cedo, é costume aqui, tomar o pequeno almoço por volta das 07h30 (já podem ver que aqui a malta levanta-se mesmo de noite) e começam a laborar precisamente às 08h00. E não há pausa nem mais descanso para nada. A seguir, por volta das 12h30 almoça-se, na empresa ou em muitos restaurantes que existem a peso (para quem pode, pois um almoço normal pode custar quase 4000 AKW) e trabalha-se até às 17h30, onde toda a gente sai, incluindo as chefias. Isto para não chegar muito tarde a casa e termos ainda tempo para estar em família.

Se tomarmos o meu exemplo, eu saio da firma por volta das 17h30, percorro duas ruas que juntas fazem um quilómetro e demoro meia hora. Depois de apanhar os miúdos, demoro quase 01h30 até chegar a casa, e assim, já podem ver que o cedo se faz tarde. E isto em dias “normais” de trânsito. Portanto, chegar a casa às 19h00, e tratar de toda a logística que as crianças exigem, façam as contas e digam se isto não é duro? Mas ressalvo, que há pessoas muito piores que eu, pois chegam a casa ainda mais tarde. Saem de noite de casa e entram igualmente de noite. E estas pessoas, têm qualidade de vida? Onde?

No meio de tudo isto acho que sou uma privilegiada.

Ainda no tema trânsito, e enquanto perco “horas de vida” nesta rotina diária, dou por mim a observar com tempo, o que me rodeia……

E vejo que em dias de chuva e apesar da sua indumentária ser formal ou descontraída, o calçado que prevalece é o chinelo ou havaianas. Não é habitual usar chapéu-de-chuva quando chove e nunca estão à venda. São raras as ruas onde existe passeio e a lama é um transtorno brutal para quem anda a pé. Vejo condomínios ao lado de bairros de musseques onde só podemos entrar acompanhados para nada correr mal. As motos não respeitam nada nem ninguém, andam por cima dos passeios se for preciso e atravessar a rua é uma aventura quase de vida ou morte. Não vejo cães ou gatos pois são todos mortos por causa do receio da raiva, ainda mortal por aqui. Em cada esquina há sempre alguém a urinar para a parede ou encostados aos carros, apesar de já existirem urinóis públicos. Vejo pó e mais pó por todo o lado, este pó castanho que as obras intermináveis na cidade não deixam desaparecer.

Os carros adoram dar banho aos transeuntes e em dias de chuva, nem o carro nem o peão se importam com um banho forçado proveniente de uma cratera inundada. É normal ver estacionado um Porsche ao lado de um sem-abrigo semi-nu, deitado na calçada, em estados impróprios. A estes, é-lhes dado o tratamento do ignorar, ninguém se importa ou trata destes casos. Triste. Há muitos carros com estrangeiros na cidade e muitos angolanos com a função de motoristas e “babás”, pois são eles que vão buscar as crianças aos colégios e as levam para casa, para as amas. Se isto não é confiança, não sei o que será. Pensem vocês.

Por outro lado, há muitas crianças descalças a andar pela rua e sozinhas. Há muitos meninos a tomar conta de bebés, sem nenhum adulto a tomar conta. A polícia tira dias para fazer a caça à multa aos estrangeiros e tira outros para chatear os angolanos, ou seja, toca a todos. Os candongueiros ou taxistas são as almas mais doidas que eu já conheci, pois na sua ânsia de fazer chegar os seus passageiros mais cedo ao seu destino, cometem loucuras e colocam vidas em risco, sem dó nem piedade, ultrapassando pela esquerda, direita ou mesmo o passeio, colocando-se em contramão e sofrendo imensos acidentes, tudo porque ganham à comissão. Até isto devia ser mudado pois mais vidas se poupavam. Também consigo ver no trânsito, o abismo de classes, uns nos seus carros top de gama importados do Dubai e os outros, a vender na rua, à chuva e ao vento, grávidas e com filhos nas costas a transportar alguidares com quilos e quilos de fruta na cabeça. Há guardas com metralhadoras em cada casa, banco ou empresa e com ordem para disparar se necessário. E sim, já ouvi tiros, à noite, quando estava em casa.

Tenho dias em que me apetece desistir pois não consigo “ engolir” aquilo que vejo e muito menos aceito quando me dizem que é normal aqui em Angola, que o povo está habituado a isto pois pior que não ter água ou comida ou casa, é mesmo estar em guerra. E não digo isto de ânimo leve, pois gosto de conversar com as mais variadas pessoas de todos os extractos sociais e constato que este período de acalmia, tem sido muito importante para os angolanos. E quem sou eu para contradizer, nunca passei por uma guerra, graças a Deus, mas pelo que me contam, as histórias são terríveis! De revoltar as entranhas. E há muito respeito pelo presidente e pela sua família. Sim, são chamados de ditadores e não tratam bem o seu povo, mas foi ele que os conduziu à paz em Angola e que a faz acontecer e o resto é conversa. E aqui há opiniões para todos os gostos e eu gosto de ouvir todas. Mas que o povo angolano merecia mais, merecia! Sem dúvida!

Apesar de tudo isto, e nas minhas longas conversas com o Adilson, mais amigo que motorista, vejo que este povo apesar das privações que diariamente sofre, acorda todos os dias com um sorriso nos lábios, bem disposto, capaz de enfrentar tudo e mais alguma coisa, capaz de esquecer-se de comer para ir ter connosco ao médico e ver se estamos bem, ficando ali a fazer-nos companhia. Obrigada Adilson. Quando dizes ao papá da casa para ir a Lisboa descansado pois tomas conta de nós, realmente cumpres a promessa!

Angola é terrível, é avassaladora, tira-nos a liberdade de movimentos e por vezes até de expressão. Nos seus piores dias pode deitar-nos abaixo com a força de uma bomba, para no dia seguinte nos animar a alma com um simples sorriso de uma vendedora, uma boa conversa entre colegas e amigos ou com a alegria dos nossos filhos, quando os vamos buscar à escola.

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Filipa Moita

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